Falando em imagens
Nas pequenas fotos feitas em celulares e palms,pode estar o começo de uma nova estética
Quando mandei as fotos dessa página para o tratamento — que é o setor da fotografia responsável por transferir imagens para o sistema do jornal — fui informada de que elas não tinham resolução suficiente para publicação. Pedi aos colegas que as aceitassem assim mesmo. Mas é por causa dessa falta de definição que, em vez de uma única foto, como de costume, vocês estão vendo quatro.
Acontece que elas não foram feitas para publicação. Na verdade, sequer foram feitas por máquinas fotográficas, na acepção tradicional do termo e do objeto: foram capturadas por câmeras embutidas em celulares e micrinhos de mão, e destinam-se, basicamente, à exibição em computadores.
Em suma, não são “fotografias” como hoje entendemos as fotografias, mas imagens de cunho informativo. Uma espécie de “alô!” visual, em que o importante não é tanto acertar o foco — até porque, nelas, isso é uma autêntica loteria — mas sim transmitir um clima, um jeito, um sorriso.
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Convivo com essas pequenas imagens precárias há dois anos, desde que passei a usar um palm com câmera. Na época, porém, a tecnologia ainda estava muito crua. As figurinhas tinham distorções demais e tamanho de menos, de modo que, passado um primeiro momento de entusiasmo, a câmera ficou relegada a eventuais “anotações” de trabalho e a um papel paradoxalmente irônico: fazer demonstrações dos prodígios do mundo digital.
De uns meses para cá, porém, têm chegado ao mercado palms e telefones capazes de produzir imagens bastante razoáveis. O deslumbramento tecnológico deu lugar a um convívio mais intenso que trouxe, consigo, uma série de sentimentos conflitantes.
Quando consegui a imagem do saleiro, por exemplo (lá em cima, à direita), fiquei exultante — e, logo em seguida, muito frustrada, por não ter tido a idéia de fazê-la com uma máquina fotográfica “de verdade”.
Tremenda injustiça: se não fosse o Palm ao alcance da mão, eu não teria conseguido era imagem alguma! Naquele momento, a câmera “de verdade” estava em segurança, a quilômetros de distância, no quarto do hotel.
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Minha primeira reação a essas imagenzinhas foi — como, acho, a de todo mundo que leva fotografia a sério — desprezo. Elas estão longe de impressionar. Não podem ser ampliadas, só funcionam bem em condições ótimas de luminosidade, desandam à menor contrariedade.
O dia mal clareando na minha janela, que a maioria das máquinas fotográficas, digitais ou não, teria interpretado sem dificuldade, foi um desafio enorme para o telefone. Mas graças a essa imagem, que ficou até bonita com sua falta de definição, suas cores estranhas e seu foco para lá de questionável, fiz as pazes definitivas com essas câmeras.
O fato é que estamos diante de uma nova estética. Não podemos comparar o que elas fazem com o que fazem Leicas e Nikons; nem, ao menos, com o que faziam as xeretas da nossa infância, até porque as usamos em circunstâncias muito diferentes. Não é por aí.
Estamos assistindo ao nascimento de uma nova linguagem visual, que vai se desenvolver como forma e conteúdo ao correr das milhares de fotos que serão enviadas de celular para celular, de PDA para computador, de computador para celular, numa ciranda limitada apenas pela capacidade de armazenagem e pelo tamanho da conta.
A resistência é natural. É difícil adotar, sem reservas, um novo paradigma; é difícil deixar de comparar. E é difícil, também, reconhecer valor estético em algo tão simples, que não requer qualquer esforço ou estudo. Quanto tempo a Alta Fotografia levou para aceitar as polaroids como algo mais do que subproduto das manifestações afetivas da classe média?
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Há pouco tempo, quando as câmeras digitais se popularizaram, assistimos a um fenômeno semelhante: vários “defeitos” das fotos digitais acabaram incorporados às nossas referências estéticas.
O registro do movimento, por exemplo, difícil de evitar em situações de pouca luz, passou a ser não só universalmente aceito, como, até, desejável em certas circunstâncias. Já vi fotos de moda, feitas com todo o rigor da técnica tradicional, retomando essa velocidade do gesto em filme. E fotos que há pouquíssimo tempo seriam rejeitadas em jornais e revistas hoje são não só aceitas, como alta e devidamente apreciadas.
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Preparem-se, pois. Vem aí uma enxurrada de pequenas fotos, brotando de aparelhos que, entre outras coisas, servem até de telefone. Não as desprezem. A forma pela qual nos comunicamos não está mudando, apenas sendo ampliada.
O olho é naturalmente inteligente; com o tempo, pode tornar-se generoso e criativo. Depois de passear por algumas centenas de imagenzinhas dessas, ele vai descobrir, para além do recado, seu eventual humor e sua beleza.
(O Globo, Segundo Caderno, 18.9.2003)
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