As revelações do plástico
Ele é básico, descartável e, às vezes, lindo:
mais ou menos como todos nós
Quando eu era criança, o plástico era o último dos materiais. Ninguém negava a sua utilidade industrial, mas dentro de casa, tirando meia dúzia de usos aceitáveis (como brinquedos ou cortinas de chuveiro) era - talvez por ser barato - o que havia de mais desprezível. Qualquer objeto que existisse em qualquer outro material, de pegadores de roupa em madeira a botões em osso ou madrepérola, era automaticamente melhor.
Este conceito não mudou tanto assim de lá para cá. O plástico continua sendo sinônimo de fútil e descartável, embora tenha conquistado o seu "espaço" e não seja mais tão complexado quanto antigamente, quando só saía para a rua disfarçado de mármore ou cerâmica. O que mudou de verdade foi a nossa relação com os objetos, atropelada por uma vida cada vez mais utilitária e transitória. Se nem a família ou o emprego são para sempre, por que logo a cafeteira havia de ser?!
Mudou, todos notam, o próprio tempo, que passa mais rápido até paras as "novidades". E por causa delas. Mas, de repente, descubro o paradoxo: já existem objetos de plástico suficientemente antigos para despertar a nossa curiosidade, quando não admiração. Já existe uma nostalgia feita de materiais sintéticos.
* * *
No domingo passado, fui visitar Gerson de Azevedo Lessa, um amigo de Internet que me seduziu com fotos irresistíveis de bijuterias, jarras e bonecas (www.fotolog.net/galessa). Gerson mora numa casa modesta e simpática em Niterói, onde guarda uma comovente coleção de plásticos antigos.
Há de tudo nela, de rádios dos anos 40 a um pequeno missal de goma-laca, que me ensinou que, no Século XIX, já se faziam plásticos, passando por soldadinhos de borracha e netsukes em celulóide, hoje ecologicamente corretos, mas feitos no Japão nos anos 30 para quem não podia comprar os de marfim.
O que mais me cativou foram as pulseiras, alegres, despretensiosas e, justamente por isso, deslumbrantes. São feitas dos mais diversos materiais, algumas com técnicas tão sofisticadas que, pela mão de obra, podiam ser (e de certa forma são) autênticas jóias. Pensando melhor; muito mais que jóias. Brinquedos.
O que mais me comoveu, porém, foi uma boneca gatinha (no sentido quadrúpede da palavra) feita nos anos 40, na Itália. É de celulóide, e está perfeita, com os bigodes cuidadosamente espetados no focinho, um a um, e com o vestidinho em que o enfeite de maior destaque é um camundongo de feltro cinza.
Ela não é sequer bonita essa gatinha, na acepção clássica que se usaria para definir as antigas bonecas de porcelana; é um pouco primitiva como estética, e um tanto tosca como execução. Esse o seu maior encanto. Ao vê-la, é impossível deixar de pensar na Itália em guerra, nas atribulações da população e, no meio disso tudo, ela sendo feita com cuidado, depois manuseada e guardada com carinho, para que o tempo a envelhecesse como um vinho.
Vem a estranheza: do ponto de vista puramente material, o esforço, o afeto e o tempo consumidos valem mais do que ela. Mas, aqui, na minha frente, ela (me) vale muito mais do que isso tudo.
Essa é, exatamente, a moral da história.
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Enquanto coleções de jóias ou de obras de arte causam admiração e fazem pensar em quem criou aquilo tudo, uma coleção de objetos corriqueiros e singelos toca o coração, e faz pensar em quem guardou as coisas, cuidando para que não se perdessem. Gente comum, como eu ou você, com uma ternura por algo que, para o resto da humanidade, não tinha, e não tem, a menor importância.
Olhe um objeto antigo de grande valor - é normal que esteja bem preservado. Em todos os tempos as obras de arte sempre foram investimentos, e tratadas como tal. Mas essa pulseirinha de bakelite? Esse conjunto de botões e fivelas? A jarra da Goyana?
Uma diferença que a gente só descobre quando vê uma coleção assim, e se emociona com as quinquilharias que já foram a vida prática. E que, neste instante, são toda a nossa memória.
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Por falar em pequenas jóias do cotidiano: “Sete Vidas”, de Heloísa Seixas, é um dos livrinhos mais lindos da temporada! São sete contos mínimos em que todos nós, que convivemos com gatos, nos reconhecemos. Quem não tem essa sorte terá, pelo menos, o prazer do convívio por tabela, através do olhar de Heloísa: terno e amoroso, como deve ser o olhar de um bípede para os animais que lhe dão a honra da sua companhia.
Nem só de texto, porém, se faz este livro. As 63 páginas de “Sete Vidas”, ilustradas por Iran do Espírito Santo, vem embaladas no projeto gráfico de Rodrigo Cerviño Lopez. Fazendo uma analogia com as coleções, reparem: não é tão difícil fazer um livro grande que impressione. Livros que páram de pé sozinhos são, por definição, obras de peso, em todos os sentidos. Difícil é chamar a atenção com um livrinho assim, com sete contos gentis que não querem mudar o mundo.
Sorte de “Sete Vidas”, que nasceu na Cosac & Naify. Nenhuma editora faz livros mais bonitos ou mais bem cuidados, mais gostosos de ver e pegar, mais cobiçáveis.
(O Globo, Segundo Caderno, 4.09.2003)
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