11.9.03





Dois anos depois, os resquícios do dia

O 11 de setembro que nos marcou para sempre - e
que, cada vez mais, nos afasta dos Estados Unidos


Onde você estava na manhã do dia 11 de setembro? Todos sabemos responder a essa pergunta, como sabemos a qual 11 de setembro ela se refere. Acho que mesmo para os chilenos que ainda sofrem com 1973, 11 de setembro é o de 2001, um dia gravado a ferro e fogo na memória coletiva do mundo ocidental.

Todos nós nos lembramos exatamente de quando ligamos a televisão, ou de quando ela fisgou o nosso olhar; todos nos lembramos do choque e da incredulidade, dos telefonemas que demos e que recebemos para nos avisarmos, uns aos outros, do que estava acontecendo, ansiosos por cooptar outras testemunhas, incapazes de assimilar o que víamos.

Geralmente, as imagens que nos chegam das grandes tragédias são ou os vídeos mal enquadrados e sem resolução dos cinegrafistas amadores, ou aquilo que as equipes de reportagem encontram no rescaldo — como os escombros fumegantes do Pentágono, por exemplo, ou as ruínas da representação da ONU no Iraque: registros perturbadores, mas de algo que já foi.

Na manhã de Nova York que todos vimos, porém, estavam as torres recortadas contra o céu claríssimo, o avião, a bola de fogo, as nuvens de fumaça, o colapso: História em tempo real. Nunca antes ninguém assistira ao vivo, pela TV, a um ataque de tal dramaticidade; nunca antes as emissoras precisaram avisar aos espectadores, a intervalos regulares, de que o que estava sendo transmitido não era um filme.

Apesar da audácia do plano terrorista e da dimensão das perdas, não sei se, sem essas imagens terríveis, repetidas milhares de vezes, teríamos ficado, todos, tão marcados pelo 11 de setembro.

* * *


Houve um tempo em que eu não gostava das torres. Sempre que via a silhueta dos prédios de Manhattan, fazia um grande esforço de imaginação para eliminá-las da paisagem, reduzindo-a ao que me parecia, então, uma dimensão mais harmoniosa.

Essa percepção começou a mudar em meados dos anos 90, quando a happy hour do Windows on the World, restaurante no topo de uma das torres, virou point do pessoal de tecnologia. Aí, sempre que ia a Nova York — coisa que fazia com freqüência naqueles tempos de efervescência da “bolha” — acabava lá, batendo papo com amigos, de preferência sentada numa das poltronas viradas para a janela e a vista extraordinária, vendo a noite cair sobre a cidade e as luzinhas se acendendo uma a uma, lá embaixo.

Tirei essa foto na última happy hour a que fui, em julho de 2001. Quando o atentado aconteceu, a sensação que tive foi a de que havia acabado de sair de lá, tão frescas as lembranças.

* * *


Como todo mundo naquele 11 de setembro, eu também não consegui me afastar da televisão — mas me dividi entre o noticiário e a internet, onde os blogs (conforme se saberia depois) chegavam à maioridade. Enquanto os servidores dos jornais e dos grandes portais desabavam com a intensidade do tráfego, os blogs (páginas individuais, em geral criadas e mantidas por uma única pessoa) transmitiam fatos, algumas fotos e muitos rumores, ecoando a perplexidade geral.

Relê-los agora, passados dois anos, é uma experiência estranha — se não uma viagem no tempo, pelo menos uma viagem às emoções extremas daquele instante, preservadas em pontos vagos do ciberespaço.

A leitura, sobretudo dos que conservaram as áreas de discussão e comentários, é muito desconcertante. No primeiro momento, o que mais se viu, além de choque e pavor, foi ódio, impotência, xenofobia. E, em não poucos casos, regozijo. Uma espécie de flagrante, nu e cru, das relações emocionais entre os Estados Unidos e o resto do mundo.

Com o passar dos dias — e com a humanização da tragédia, revelada nos pequenos cartazes, nos depoimentos de parentes e, horror!, nas vozes dos mortos nas secretárias eletrônicas — o mundo sentiu, se não pena, algo bem próximo a isso pelos EUA.

Falando objetivamente — coisa que talvez se possa fazer hoje, ou que talvez não se possa fazer nunca — houve um raro momento histórico em que o sentimento predominante em relação ao país foi de simpatia; um momento ideal para se restaurar a imagem do império, desgastada pelos motivos habituais, desmoralizada pelo fiasco eleitoral da Flórida e ridicularizada a cada aparição pública de George W. Bush.

* * *


Não seria preciso muito para capitalizar essa onda de solidariedade. Com um mínimo de sensibilidade diplomática, ela teria ido longe, reconfirmada, de forma quase automática, a cada 11 de setembro.

Ao contrário, o que se viu — e ainda está se vendo — foi um dos maiores desastres políticos de todos os tempos. Em menos de dois anos, o país que, até outro dia, era conhecido como sinônimo de democracia revelou-se um estado totalitário cada vez menos dissimulado, terreno minado para dissidentes e zona de alto risco para os estrangeiros. O destino turístico que tanto amávamos hoje nos repele e causa desconforto e indignação.

Ninguém esperava nada do governo Bush; mas, paradoxalmente, ninguém esperava tanto.

(O Globo, Segundo Caderno, 11.9.2003)

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