26.4.03



Sangue e areia

Quando comecei a escrever esta coluna, em janeiro, achei que seria moleza. No fundo, coluna de segundo caderno é uma espécie de bate-papo: eu escrevo daqui, vocês lêem daí e vamos em frente, tocando a vida e pensando nas contas do fim do mês.

Mas — claro! —- não é bem assim. Às vezes uma conversa interessantíssima, que dura um jantar inteiro, não dá mísero parágrafo; às vezes, o que a gente acha ótimo no domingo parece uma bobagem na segunda; e palavras perfeitamente boas, que faziam todo o sentido na conversa, se rebelam sem mais nem menos, e se recusam a impressionar o papel, por falta do gestual.

Há assuntos que tento, em vão, encaixar em algum lugar — o tempo passa e eles continuam mudos, atropelados pelos acontecimentos ou pelo meu estado de espírito. Outros, dos quais tento fugir, forçam a barra, dão um jeito de entrar na página. Do primeiro caso não mostro exemplos, porque ainda tenho esperança de ver meus mudinhos dando o recado; do segundo, nem preciso falar — ultimamente, o ataque ao Iraque tem ocupado todos os espaços.

Não adianta imaginar que escrevo o que quero; a coluna se escreve. Este é um chavão dos mais batidos, mas me sigam, por favor: são tantas as coisas que influenciam a escrita que, no fim, a minha vontade é quase secundária.

Hoje mesmo, por exemplo: sobre o que é que eu poderia, ou deveria, escrever, num feriado prolongado — a não ser sobre este trabalho, que me arranca do dolce far niente ?

Sei que parece exagero, mas acreditem: não é. A partir do momento em que comecei a coluna, comecei a viver em função dela. Não sei se isso acontece com os outros colunistas, mas minha referência básica passou a ser o que é ou não é bom assunto, ou até mesmo o que dá ou não dá boa ilustração.

* * *

No domingo à tarde, na praia, duas carrocinhas de sorvete paradas perto d'água, ambas pintadas da mesma maneira tosca, anunciavam “7 bolas a 1 real”. Os dois vendedores, sentados cada qual sobre sua carrocinha, davam um tempo e batiam um papo.

— Caramba, que foto que eu estou perdendo! — exclamei. — Como é que fui deixar a máquina em casa?!

— Mãe, relax! — disse a Bia. — Esquece essa máquina! Você está na praia, curtindo o feriado. Que coisa!

Pensei: a Bia tem razão, tenho que aprender a desligar. Decidi então reclinar a cadeira e deixar todas as fotos possíveis para lá — mas eis que pus a mão direita na ponta errada e uma catraca quase levou um pedaço do meu mindinho. Foi uma dor que nem vos conto e uma sangueira só. A Bia imediatamente chamou um vendedor de mate, pediu uma pedra de gelo, embrulhou na canga e me deu.

Enquanto eu tentava achar a melhor forma de aplicar aquilo, uma moça se aproximou, solícita, com um copo de água mineral:

— Não põe o gelo na ferida porque pode queimar. Faz assim, ó: põe o gelo no copo e depois mergulha o dedo na água gelada. Pode ficar com a minha água. Talvez fosse bom tomar uma antitetânica.

Fiquei admirada.

— Você é médica?

— Que nada, não sou, não... Inclusive, nem posso ver sangue que desmaio. É que já me aconteceu isso uma vez.

Ela não tinha mesmo que ser médica, é claro; era brasileira. Esta cena só se vê aqui — uma pessoa se dar ao trabalho de acudir uma completa desconhecida, acompanhada e já “atendida”, por assim dizer, e ainda lhe oferecer a sua água. Comovida, comentei isso com a Bia (que tem a experiência de quatro anos vividos naquele país) e concordamos: em nenhum outro lugar do mundo isso acontece.

Fiquei olhando para o sangue tão vermelho pontilhando a areia e obtemperei (!):

— Pô, isso também dava uma boa foto... Meio macabra, mas muito legal.

— Mãe!!!

* * *

Tirando a catraca assassina, a cadeira em que eu estava era ótima. Ela é um lançamento mais ou menos recente da Ordem e Progresso, que fica em frente ao César Park e é uma das mais competitivas barracas da Praia de Ipanema. O aluguel está a R$ 2. Por R$ 5 se pode alugar a espreguiçadeira de plástico branca, com cara de resort, que não machuca ninguém e deve ter seguro de vida.

É fácil reconhecer o pessoal da Ordem e Progresso. Eles trabalham com uns aventais de plástico estampados com a bandeira nacional que poderiam ser bolsas do Gilson Martins em outra encarnação.

O serviço é tão caprichado que até o coco vem com um corte especial, mais largo do que o comum: a lasquinha recortada funciona como uma tampa.

Ficamos tão bem impressionadas que viramos freguesas; a Bia até desistiu do clube do qual é sócia.

Ah, vocês não sabem? No Leblon tem uma barraca chiquérrima, que dá preferência aos associados. Tem até página na web. Com a anuidade de R$ 10, ganha-se desconto nas cadeiras e nos cocos. O visual é o melhor possível, a água bate pertinho e a gente pode acompanhar todo o movimento.

Dá cada foto que só vendo.

(O GLOBO, Segundo Caderno, 24.4.2003)

Nenhum comentário: