Sangue e areia
Quando comecei a escrever esta coluna, em janeiro, achei que seria moleza. No fundo, coluna de segundo caderno é uma espécie de bate-papo: eu escrevo daqui, vocês lêem daí e vamos em frente, tocando a vida e pensando nas contas do fim do mês.Mas — claro! —- não é bem assim. Às vezes uma conversa interessantíssima, que dura um jantar inteiro, não dá mísero parágrafo; às vezes, o que a gente acha ótimo no domingo parece uma bobagem na segunda; e palavras perfeitamente boas, que faziam todo o sentido na conversa, se rebelam sem mais nem menos, e se recusam a impressionar o papel, por falta do gestual.
Há assuntos que tento, em vão, encaixar em algum lugar — o tempo passa e eles continuam mudos, atropelados pelos acontecimentos ou pelo meu estado de espírito. Outros, dos quais tento fugir, forçam a barra, dão um jeito de entrar na página. Do primeiro caso não mostro exemplos, porque ainda tenho esperança de ver meus mudinhos dando o recado; do segundo, nem preciso falar — ultimamente, o ataque ao Iraque tem ocupado todos os espaços.
Não adianta imaginar que escrevo o que quero; a coluna se escreve. Este é um chavão dos mais batidos, mas me sigam, por favor: são tantas as coisas que influenciam a escrita que, no fim, a minha vontade é quase secundária.
Hoje mesmo, por exemplo: sobre o que é que eu poderia, ou deveria, escrever, num feriado prolongado — a não ser sobre este trabalho, que me arranca do dolce far niente ?
Sei que parece exagero, mas acreditem: não é. A partir do momento em que comecei a coluna, comecei a viver em função dela. Não sei se isso acontece com os outros colunistas, mas minha referência básica passou a ser o que é ou não é bom assunto, ou até mesmo o que dá ou não dá boa ilustração.
* * *
— Caramba, que foto que eu estou perdendo! — exclamei. — Como é que fui deixar a máquina em casa?!
— Mãe, relax! — disse a Bia. — Esquece essa máquina! Você está na praia, curtindo o feriado. Que coisa!
Pensei: a Bia tem razão, tenho que aprender a desligar. Decidi então reclinar a cadeira e deixar todas as fotos possíveis para lá — mas eis que pus a mão direita na ponta errada e uma catraca quase levou um pedaço do meu mindinho. Foi uma dor que nem vos conto e uma sangueira só. A Bia imediatamente chamou um vendedor de mate, pediu uma pedra de gelo, embrulhou na canga e me deu.
Enquanto eu tentava achar a melhor forma de aplicar aquilo, uma moça se aproximou, solícita, com um copo de água mineral:
— Não põe o gelo na ferida porque pode queimar. Faz assim, ó: põe o gelo no copo e depois mergulha o dedo na água gelada. Pode ficar com a minha água. Talvez fosse bom tomar uma antitetânica.
Fiquei admirada.
— Você é médica?
— Que nada, não sou, não... Inclusive, nem posso ver sangue que desmaio. É que já me aconteceu isso uma vez.
Ela não tinha mesmo que ser médica, é claro; era brasileira. Esta cena só se vê aqui — uma pessoa se dar ao trabalho de acudir uma completa desconhecida, acompanhada e já “atendida”, por assim dizer, e ainda lhe oferecer a sua água. Comovida, comentei isso com a Bia (que tem a experiência de quatro anos vividos naquele país) e concordamos: em nenhum outro lugar do mundo isso acontece.
Fiquei olhando para o sangue tão vermelho pontilhando a areia e obtemperei (!):
— Pô, isso também dava uma boa foto... Meio macabra, mas muito legal.
— Mãe!!!
* * *
É fácil reconhecer o pessoal da Ordem e Progresso. Eles trabalham com uns aventais de plástico estampados com a bandeira nacional que poderiam ser bolsas do Gilson Martins em outra encarnação.
O serviço é tão caprichado que até o coco vem com um corte especial, mais largo do que o comum: a lasquinha recortada funciona como uma tampa.
Ficamos tão bem impressionadas que viramos freguesas; a Bia até desistiu do clube do qual é sócia.
Ah, vocês não sabem? No Leblon tem uma barraca chiquérrima, que dá preferência aos associados. Tem até página na web. Com a anuidade de R$ 10, ganha-se desconto nas cadeiras e nos cocos. O visual é o melhor possível, a água bate pertinho e a gente pode acompanhar todo o movimento.
Dá cada foto que só vendo.
(O GLOBO, Segundo Caderno, 24.4.2003)
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