3.4.03



Por que odeio a guerra e outras considerações

Taí uma coisa que nenhum bípede dotado de um mínimo de sensibilidade precisaria explicar: por que odeia a guerra. Já li muitos artigos e alguns tratados tentando justificar a guerra — não necessariamente esta, mas qualquer guerra; não necessariamente neste século, mas em épocas em que ainda se consideravam “heróicos” os feitos do campo de batalha. Não adianta. Nada me convence. Não há argumento que, na minha cabeça, justifique um monte de desconhecidos se matando uns aos outros, apenas porque alguém, que provavelmente vai ficar bem a salvo da matança geral, assim o decidiu. Para mim, a guerra — qualquer guerra — será sempre a prova mais completa de que falhamos por completo como os animais superiores que pretendemos ser, e que “civilização” não passa de um conceito muito bonito, mas cada vez mais distante das nossas vidas.

Além das grandes razões óbvias, há uma outra razão pela qual odeio a guerra — seja a guerra declarada do Iraque, seja a nossa guerra carioca não declarada de todos os dias, que dona Rosângela parece achar um fato perfeitamente normal. É que, a partir do momento em que uma guerra é anunciada, ou começa a tomar forma, o nosso pensamento é seqüestrado. O meu, pelo menos, está preso às orgias de violência, triste, de asa cortada. Ando num estado de preocupação permanente, quase incapaz de me afastar dos noticiários e do computador, onde, em vez de percorrer os blogs amigos e brincar com os Sims ou o xadrez, fico compulsivamente procurando mais informações. Praticamente deixei de assistir a vídeos e DVDs e a pilha de livros ao lado da cama está intocada; a seu lado, cresce a pilha de recortes, cadernos especiais, prints de artigos estrangeiros e comentários da web.

Troco idéias com os amigos, e percebo que o desconforto não é paranóia minha, mas sensação geral. É como se as nossas vidas estivessem em suspenso, acontecendo numa espécie de realidade paralela, em que tudo remete à guerra. Tudo passa a ser secundário e adiável diante deste horror contínuo, diante do choque e do pavor, diante das implicações futuras que cada palavra imbecil pronunciada em Washington (ou no Rio) pode vir a ter. Um trocou as saudações de hábito do e-mail por “O mundo vai acabar”; outra deixa um comentário, manda um beijo e acrescenta: “Sabe que me sinto tão desconfortável, que assinar com beijos parece ridículo.”

Este é o problema. Tudo parece ridículo diante da guerra. As nossas aflições cotidianas se tornam ridículas, as nossas preocupações corriqueiras se tornam ridículas, mesmo as nossas piores aflições se tornam ridículas. Um dos meus gatinhos favoritos morreu há três semanas. Sinto falta dele todos os dias, era o meu companheiro de trabalho, sempre em cima da escrivaninha disputando espaço com o mouse e o teclado; mas lá no fundo me censuro por sofrer essa perda, porque, enfim, ela também me parece ridícula diante de uma guerra. Subitamente, tudo o que faz a nossa humanidade, os nossos sentimentos e as nossas delicadezas passa a ser ridículo. Como mandar um abraço? Como se despedir com um beijo? Como chorar um gatinho?

* * *

Meu avô lutou durante a Primeira Guerra e contava histórias das trincheiras. Uma vez seu regimento passou meses num ponto qualquer do mapa onde nada acontecia — eles do exército austro-húngaro de um lado, os inimigos russos do outro. Não lembro dos detalhes, se acabou munição ou se houve um claro nos planos de batalha, mas o fato é que, com a espera, ficaram amigos. Os soldados dos dois lados saíam das respectivas trincheiras, se encontravam na terra de ninguém — que eu, quando criança, achava sempre algo extraordinário, assombroso: terra de ninguém — bebiam, comemoravam juntos a chegada de notícias de casa. Um dia, inesperadamente, ouviu-se um intenso tiroteio no lado dos russos. Os do meu avô, surpresos, recolheram-se à sua trincheira e pensavam no que fazer quando apareceu um dos russos:

— Imaginem que mandaram para cá uns caras novos, que queriam fazer guerra contra vocês...! Mas já está tudo bem, demos um jeito neles.

* * *

Minha filha, que mora na Lagoa e trabalha na Barra, anda apavorada e carrega uma “bolsa cenográfica” com algumas coisas bobas dentro para entregar para os assaltantes; a bolsa de verdade fica no porta-malas. Isso porque é uma moça otimista, que acha que não vão levar o carro. Meu filho mora nos Estados Unidos e está desesperado. Dia desses escreveu:

“Ontem à noite eu estava assistindo à cobertura dos ataques. Eles mostravam uma câmera congelada na paisagem noturna de Bagdá. Volta e meia passava um carro, um ônibus ou uma pessoa qualquer. Do meio do nada desandei a chorar e não conseguia parar. Só pensando nas inúmeras famílias, parecidas com a minha, duas criancinhas dormindo, mulher grávida, etc. Alheios a tudo o que está acontecendo até que um Tomahawk lhes caía na cabeça. Um pouco depois mostraram um batalhão daqui de Michigan pronto pra embarcar. Os soldados ainda cheios de espinhas na cara, 18, 19 anos. Gente que foi tão manipulada pelos Rumsfelds da vida quantos os iraquianos pelo Saddam. Fiquei pensando nos pais de alguns desses que vão ter que receber o que restou dos filhos numa bolsa plástica. Mais choro. Horrível pra todo mundo.”

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Apesar de tudo, a praia continua. Linda.

(O Globo, Segundo Caderno, 3.4.2003)

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