27.5.10

Suipa: cão danado, todos a ele



Há um grande mal-estar entre os protetores e amigos de animais desde que apareceram nos jornais as primeiras denúncias contra a Suipa. Não são segredo para ninguém a super-lotação da instituição e a sua absoluta falta de organização administrativa, mas as denuncias de corrupção pegaram muita gente de surpresa. Todo mundo está andando na ponta dos pés e falando baixinho, mesmo porque criticar é fácil. Difícil mesmo é pegar no batente e ocupar um espaço que, há tempos, deveria ter sido ocupado pelo estado, que em relação aos quadrúpedes consegue ser ainda mais omisso do que em relação aos bípedes (se é que isso é possível).

A Suipa, para quem não sabe, é uma instituição particular, de utilidade pública e sem fins lucrativos, que há 67 anos se ocupa de animais abandonados. Ela é mantida pelos associados, e não recebe qualquer verba municipal, estadual ou federal; seus diretores e conselheiros fiscais são associados que trabalham voluntariamente, sem receber salário. Apesar disso, é considerada órgão público pela maioria das pessoas, inclusive por incontáveis juízes que, decidindo contra a permanência de animais aqui ou ali, automaticamente os encaminham para lá – sem procurar saber de onde virá o dinheiro para sustentá-los e, mais importante, se há ou não espaço para acolhê-los.

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No mesmo jornal que, na segunda-feira, trouxe a notícia sobre a investigação do Ministério Público, a coluna Gente Boa publicava uma notinha a respeito dos pingüins do zoológico, mortos por cães de rua que os alcançaram por baixo da cerca. Para onde o zoológico mandou os cães? Ganha um pacote de ração quem responder “Para a Suipa”.

Ora, faz sentido uma fundação especializada em animais, ligada à prefeitura, encaminhar cães para uma instituição particular cujos problemas de super-lotação são notórios? Na minha cabeça, não faz – mas pode ser que as esclarecidas cabeças dos vereadores, que agora uivam como lobos pedindo CPI para a Suipa, equacionem isso melhor.

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Dizem as notícias que 99% dos bichos que vão para a Suipa morrem. Considerando que apenas 1% de todos eles consegue adoção, fico com a impressão de que faltaram duas informações importantes aí, a saber: em quanto tempo, e em que condições. Porque, como é sabido, o indice de mortalidade dos seres vivos é de 100%. Não estou aqui para defender a Suipa; só estou pensando em voz alta.

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Fui associada da Suipa por muito tempo e, há alguns anos, deixei de ser, por discordar da forma como é administrada. Vejo uma grande diferença entre um abrigo de animais e um depósito, e não concordo nem com a prática sistemática de super-lotação, nem com as exigências descabidas para adoção que ela faz. Vários amigos decentes e de bom coração que quiseram adotar animais por lá desistiram diante das dificuldades.

Sei que muita gente mal-intencionada procura animais com os piores motivos, mas é preciso ter critério e bom-senso, sobretudo diante das condições que os coitadinhos enfrentam lá dentro.

Ainda assim, fico com um pé atrás quando, de repente, meio mundo corre para fazer justiça contra uma instituição que, em última instância, só existe por causa da irresponsabilidade com que se abandonam animais nesta cidade, e por omissão da prefeitura e do governo do estado, que deviam cuidar desses animais, mas não cuidam.

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O governo do estado, por exemplo, pretende gastar R$ 180 milhões em publicidade. Esta é uma informação particularmente difícil de engolir nessa época do ano, quando comemoramos o Dia da Liberdade de Impostos, ou o fim dos meses que passamos trabalhando única e exclusivamente para dar dinheiro aos que nos tratam como os otários que somos.

Se a publicidade do governo fosse honesta e voltada para o bem da população, ela deveria incluir, forçosamente, uma campanha regular de conscientização sobre o trato dos animais. Cães e gatos devem ser castrados, devem ser adotados de forma responsável e não podem ser abandonados.

O que parece óbvio para tantos de nós evidentemente não é verdade universal. Muita gente tem pena de castrar seus animais, mas não sente o menor remorso em abandonar os filhotes indesejados bem longe de casa. Sem uma campanha educativa eficiente, este comportamento continuará se repetindo até o fim dos tempos, causando sofrimento e morte de milhões de animais inocentes.

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Independentemente das denuncias de corrupção, é certo que a Suipa está precisando de um bom sacode. As condições em que lá vivem os bichos e trabalham os humanos são insustentáveis; onde cabe um não cabem cinco, dez ou vinte. Ter um terreno a mais, velha reivindicação da instituição, não vai resolver nada – apenas vai ampliar as dimensões do drama. Administrar um abrigo daquele tamanho, que mexe com aquela verba, não é tarefa para amadores, por bem intencionados que sejam.

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Mas, mais do que a Suipa, todos os cariocas merecem uma chamada, a começar pelas autoridades, que só se lembram dos bichos para matá-los ou isolá-los em ambientes hostis e super-lotados, sem condições de acolhe-los com um mínimo de dignidade. A solução para o problema dos bichos abandonados não é fechá-los em depósitos, longe das vistas de todos; é evitar, em primeiro lugar, que sejam abandonados. Se a população fosse mais educada e mais responsável, a Suipa sequer precisaria existir.


(O Globo, Segundo Caderno, 27.05.2010)

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