25.5.10

Memórias de um incansável



Durante seis meses, a primeira coisa que Sergio Britto fez ao acordar foi sentar à escrivaninha e pôr suas memórias no papel. Foram várias canetas Bic (ele não datilografa nem usa computador), muitas idas e vindas, correções e revisões. O processo foi acompanhado de perto, praticamente passo a passo, por Michelle Strzoda, a editora da Tinta Negra Bazar Editorial, que um dia bateu à sua porta com uma idéia na cebaça e um contrato na mão.

-- Foi um pedido inesperado, -- diz Sérgio, autor de “Fábrica de Ilusão”, publicado em 1996. – Eu já tinha contado alguma coisa no livro anterior, o que escreveria agora? A Michelle sugeriu que eu escrevesse na primeira pessoa, e assim que comecei, senti que poderia fazer o livro. As lembranças estavam todas lá, o texto veio com facilidade.

Michelle foi digitadora, pesquisadora, psicóloga. Cada etapa do trabalho foi discutida em detalhes entre os dois, até ambos, igualmente exigentes, se darem por satisfeitos. O resultado, “O teatro e eu”, chega às livrarias nessa quarta, dia 26, com lançamento na Travessa de Ipanema. O autor, que aos 87 anos teria todo direito a sossegar e se recolher depois de terminada a tarefa, nem pensa nisso. Ao contrário, pretende atirar-se com gosto à roda-viva das viagens, lançamentos e entrevistas: na próxima segunda, dia 31, já tem outro compromisso marcado com o público, este na Livraria Cultura, em São Paulo.

“O teatro e eu” começa com mais “eu” do que “teatro”. Sergio Britto fala dos pais e da família, da descoberta da homossexualidade, dos primeiros amores.

“Para mim, se dizer bissexual é como esconder o homossexualismo que você não quer admitir, -- escreve. – Sempre me senti homem o bastante para assumir opções e atitudes na minha vida.”

Depois de uma tentativa de suicídio singularmente despida de drama, que terminou, de pulsos enfaixados, num baile carnaval, tudo passa a segundo plano. É quando ele recebe o convite para participar do Teatro Universitário – e começa a longa e bem sucedida carreira que, neste 2010, completa 65 anos.

“Eu compreendo que no aprendizado do ator existem várias fases: numa primeira, você pensa saber tudo e não sabe que não sabe tudo, nem mesmo sabe muito; numa segunda, você percebe o que não sabe; numa terceira fase, você começa a saber o que ainda precisa aprender e, às vezes, percebe também que existem coisas que não vai saber nunca, uma percepção terrível de suas limitações. Já passei por todas essas fases. Hoje, tenho a pretensão de saber quase tudo, mas nem por isso me sinto capaz de enfrentar qualquer texto, qualquer tipo de espetáculo. Esse saber me indica as limitações com as quais, como ator, ainda posso esbarrar.”

Comento com Sérgio Britto que seu livro será uma referência fundamental para quem quiser saber o que se fez em teatro no Brasil na segunda metade do século XX:

-- Quando a gente tem a sorte de envelhecer bem a gente vira uma espécie de ícone, -- observa, divertido. – Você acha que o livro daria uma peça?

Boa pergunta. As 416 páginas de “O teatro e eu” estão recheadas de observações sobre atores, atrizes, técnicos, autores – toda a densa humanidade que nos conta histórias sobre o palco desfila por lá, com suas angústias, suas dificuldades, suas alegrias. Há choques de egos e desavenças, aplausos e vaias. Fico pensando como seria possível encenar isso, mas a tarefa me parece totalmente impossível, não só pelo tamanho do elenco como pela falta de um fio condutor.

Mas aí, talvez, esteja a peça possível: velho ator, cercado de livros, DVDs e antigos programas, conta para os amigos como foi a sua vida. Afinal, este é o tom do livro que, apesar de divido em capítulos, foge de uma ordem cronológica rígida:

“Estou contando tudo na maior confusão, é que minha história é toda de idas e vindas, progressos e retrocessos.”

E isso, reparem só, está na página... 18!

E mais: “Escrevo minhas memórias pouco depois de ter completado 86 anos”, -- diz Sérgio, bem adiante. -- “Estamos, querendo ou não, no século XXI. E quem é esse ator com pretensões e ambições cada vez maiores? Vocês que já me leram até aqui sabem quem sou eu, mas ainda assim creio que me explicar mais para vocês vai me ajudar muito a me explicar para mim mesmo.”

Em certos momentos do livro, o autor chega a desaparecer por trás do seu trabalho. No capítulo dedicado ao teleteatro, por exemplo, a referência a peça após peça, elenco após elenco, tem um efeito estranhamente hipnótico, como um mantra repetido centenas de vezes. Ali, além dessa longa lista, não há aparentemente nada. Mas este nada, quem diria, conta tudo. As palavras têm seus truques, e Sérgio Britto está certo quando escreve que sabemos quem ele é. Na medida em que é possível saber quem é o outro, sabemos sim – e é impossível deixar de sentir certa vertigem diante do tanto que ele viu e fez ao longo dos anos.

A lista do teleteatro é material precioso. Ali está não só um retrato muito nítido da cena teatral brasileira, como o princípio da televisão no país, aquele momento em que o hardware já tinha sido inventando, mas ninguém sabia ao certo que software – vale dizer que programação -- rodar naquilo.

“O prefixo ‘Smile’, música de Chaplin para o filme ‘Luzes da cidade’, marcava toda segunda-feira o início do nosso programa. A verdade é que o início do programa é que não tinha hora tão certa assim. Diziam que o Grande Teatro começava às dez. Naquela época, o horário da televisão não era tão rigoroso como é hoje em dia. Era às dez, mas às vezes começava às nove e meia. Houve dias em que começou quase a uma da manhã. Fizemos 386 peças, quase nove anos no ar.”

Dá para imaginar isso? 386 peças?! Não há obra importante do repertório mundial que não tenha sido apresentada por aquela intrépida truque, que incluía, além de Sérgio, seu criador e diretor, tantos nomes que se tornaram grifes verdadeiras da arte. Do elenco fixo participavam Fernanda Montenegro, Nathália Thimberg, Zilka Salaberry, Ítalo Rossi. Sergio alternava a direção com Flávio Rangel e Fernando Torres. Infelizmente, tudo desapareceu: sobre as fitas da Tupi e, posteriormente, da TV Rio, foram gravadas e regravadas outras coisa. Já os 16 espetáculos realizados na Globo foram vítimas de um incêndio.

A memória prodigiosa de Sérgio Britto passeia pelos anos do TBC, do Maria Della Costa, do Teatro de Arena, dos Teatros dos 12, dos Sete e dos Quatro; como se estivesse conversando conosco (e na verdade está), ele se lembra de viagens e de espetáculos que assistiu no exterior, de filmes e de óperas. O retrato que fica, virada a última página, é, acima de tudo, o de um trabalhador incansável, que nem sonha em pendurar as chuteiras. Agora mesmo prepara-se para ensaiar “Recordar é viver”, de Hélio Sussekind, com direção de Eduardo Tolentino. E com algumas vantagens em relação ao passado:

“Não preciso buscar nas minhas memórias sentimentos parecidos com o dos personagens de cada texto. A memória na minha idade é muito presente, atuante, me perguntando que personagem novo é esse. Como é: frustrado? Sei o que é frustração, não preciso nem buscar imagens na memória. Frustração amorosa? Sei, sei demais. Frustração artística? Qual o ator com 65 anos de carreira que não sabe o que é isso?”

“Não sabíamos nada, hoje pensamos saber. Sabemos? Sabemos sim, estamos mais sábios em nossas vidas e na percepção da morte que se aproxima. E nos sentimos fortes ainda na luta pela vida.”


(O Globo, Segundo Caderno, 25.05.2010)

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