1.10.09

Vida de menina




Uma crônica puxa outra. Isso é quase inevitável quando se levanta a poeira de certas histórias, e espanam-se cantinhos delicados. A caixa postal amanhece cheia de acréscimos, contestações, pingos nos iii, casos iguaizinhos ou completamente diferentes. É muito difícil resistir à tentação de continuar num assunto que dá panos para as mangas; às vezes, é impossível. Foi o que aconteceu há duas semanas, quando a crônica sobre “Budapeste 1900”, de John Lukacs, despertou as lembranças da Edith Elek, tão parecidas com as minhas; e é o que acontece hoje. Ao escrever sobre Thrity Umrigar e as relações entre patrões e empregados que atravessam alguns de seus livros, tirei a Lucia Latorre na sorte grande.

Leiam o que ela conta, e depois me digam se não seria uma injustiça tremenda deixar o seu texto escondido entre os comentários do blog:

“Eu não sei quem é Thrity Umrigar, mas vou procurar saber e até, talvez, comprar o livro dela. Quanto às empregadas domésticas, aos 12 anos, em 1969, comecei na profissão. Fui trabalhar na casa de uma familia portuguesa. Eu era bem tratada, comia na mesa com eles, recebia sobras de frutas para levar para casa e isso me deixava muito satisfeita. Meu turno era de oito às duas, e às três ia para a escola.

Realizava tarefas que hoje ninguém faria: naquele tempo o marido português fazia uso do urinol noturno, e eu tinha que esvaziá-lo pela manhã. Desculpe se estou enojando alguém. Mas eu fazia sim essa tarefa, não com prazer, mas fazia, e recebia um salário pequeno mas que me fazia feliz. O salário, claro. Depois fui trabalhar como babá de uma garotinha doente, cuja mãe já estava enfadada de cuidar. A criança tinha uma doença no rim, eu tinha que fazer a coleta da urina da criança diariamente para ser realizado o exame. Eu tinha 13 anos, e realizava essas obrigações com muita responsabilidade.

Quando a criança sarou, fui trabalhar na casa da professora de português que, no primeiro dia de aula, pediu que as alunas preenchessem um formulário, que era na verdade uma pesquisa para achar uma doméstica. Então, com 13 anos e meio, fui trabalhar na casa da professora de português, onde era bem tratada, mas tinha vergonha, por ser minha professora. Quase não falava com ela. Nunca consegui tomar um gole de café na frente dela. Mas como eu amei trabalhar ali. E como eu odiei.

Logo que cheguei na casa, vislumbrei o chão mais lindo que jamais havia visto na minha vida. Um assoalho de tacos lindos, perfeitamente rejuntados, prontos para serem encerados. Tinha fixação por chão encerado. E pensei: tai um serviço que vou fazer com o maior prazer. Ledo engano. A professora não queria encerar o chão. Alegava que o sinteko era novo e não precisava de cera.

Eu não me conformava. Como podia alguém ser dono de um assoalho daqueles e não querer que ele estivesse brilhando? Em que mundo vivera essa mulher, que não sabia que os assoalhos foram feitos para encerar? Que a casa só estava limpa depois do chão brilhando? Aquilo era uma heresia.

Eu não aguentei. Um dia comprei uma lata de cera liquida, brilho instantâneo (já não usava mais os tabletinhos Santo Antonio), esperei ela sair para dar aula (ela saia às três e eu ficava até as seis cuidando da criança até o marido chegar) e encerei primeiro um pedaço do quarto. Só de um lado da cama. Para ela não perceber. No outro dia mais um pedaço. Depois um pedaço da sala, depois mais outro. Até que o chão começou a brilhar. Ela era tão desligada que nunca percebeu que eu encerava o chão. O meu chão. Porque aquele chão que brilhava era meu.

Quando tive que pedir demissão do emprego, descobri que ela tinha feito uma poupança em meu nome. E que eu possuia uma quantia considerável para meu padrão financeiro. E que cobria em muito os gastos com a cera que comprara. Foi uma grata surpresa, já que eu estava mudando de cidade, de estado e não sabia o que viria pela frente. Depois a vida me levou por outros caminhos e, já na vida adulta e casada, tive várias empregadas domésticas. Todas que passaram pela minha casa incentivei a estudar, e ensinei as crianças a tratá-las com respeito.

Hoje não tenho nem empregada, nem faxineira. Por opção. Estou economizando para viajar de novo. Mas mesmo quando tenho alguém para me ajudar, encerar o chão continua sendo a minha tarefa.

Ah, e não tenho nenhum constrangimento em contar para meus filhos que fui empregada doméstica, e das boas.”

* * *

Não é a primeira vez que vocês lêem a Lucia Latorre aqui. Há uns tempos, quando a Bia trouxe a foto de uma humilde casinha de madeira em Xanxerê, onde tudo brilhava na mais perfeita ordem, Lucia escreveu sobre a sua infância numa casinha igual. Até hoje encontro leitores que me falam daquela crônica. Tenho a maior admiração por essa amiga que não conheço, pela sua fibra, sua sensibilidade e o seu jeito despretensioso de tocar o coração da gente.

* * *

Esta não foi uma semana feliz para a Famiglia Gatto. Descobiru-se que Irineu, o frajolinha da foto, que me conquistou há dois anos no estacionamento do jornal, é portador de FeLV, o vírus da leucemia felina. A doença, que não tem cura, destrói os mecanismos de defesa do organismo, e abre caminho para uma série de infecções secundárias. Tudo o que se pode fazer é tratar dessas infecções, dar remédios para reforçar a sua resistência e torcer por ele. É o que estamos fazendo.


(O Globo, Segundo Caderno, 1.10.2009)

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