Volta e meia, as nossas calçadas de pedras portuguesas ficam sob fogo cruzado. O argumento é sempre o mesmo: o perigo que a falta de manutenção representa para os transeuntes. Mas, se o problema é a manutenção, por que tirar as pedras? O que leva alguém a supor que uma cidade incapaz de manter um calçamento de pedras portuguesas será capaz de manter um calçamento de qualquer outra coisa?
Já vimos este filme durante o Rio-Cidade, quando almas iluminadas tiraram as pedrinhas da Avenida Copacabana, substituindo-as por materiais supostamente mais resistentes. Hoje, passados quinze anos, sofremos com as conseqüências: não há nada mais feio, pobre ou antigo do que aquele cimento. Será que é isso que queremos para a cidade toda?!
Não sei se vocês se lembram, mas, na época, enquanto desqualificava as pedrinhas na Zona Sul, a prefeitura construía, na Ilha do Governador, mais de 15 quilômetros de calçadas... em pedra portuguesa! Coerência, para que vos quero? O pior é que estou convencida de que as pedras removidas em Copacabana foram revendidas, a peso de ouro, para a obra da Ilha; mas isso são outros 500. Ou 500 mil.
O fato é que, ao contrário do que gostam de pregar seus detratores, os mosaicos são uma excelente forma de calçamento, que vem provando seu valor há milhares de anos. Variações das nossas calçadas usadas na Mesopotâmia, no Egito e na antiguidade greco-romana sobreviveram a toda espécie de desastre, e podem ser vistas até hoje. É verdade que, no máximo, enfrentaram terremotos e erupções de vulcões, e não administrações do Cesar Maia; mas, ainda assim..
Duvido que outras formas de calçamento se conservem tão bem através dos séculos. Para ter idéia de como se comportam atualmente, basta ver as ruas lindas e impecáveis de Lisboa, onde é quase impossível, se não impossível de todo, ver pedra fora do lugar.
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O diretor-adjunto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ, Cristóvão Duarte, também pensa assim. Em artigo publicado no Globo Online no último dia 28, ele aponta, entre as vantagens dos mosaicos de pedras portuguesas, a sua imbatível flexibilidade, que permite acompanhar os menores declives do terreno e todas as formas geométricas encontradas pelo caminho; a economia do sistema, que reaproveita sempre o mesmo material, e dispensa o uso de cimento (basta que as pedras sejam assentadas bem próximas umas às outras, e não de qualquer maneira, como se faz aqui); a praticidade do assentamento, que pode ser aberto para obras subterrâneas e fechado em seguida com um mínimo de barulho e transtorno; e a sua capacidade drenante.Esse é um ponto particularmente interessante. As pedras são (ou deveriam ser) assentadas sobre uma camada de areia que, por sua vez, recobre um solo compactado e devidamente preparado para drenar as águas superficiais. Ou seja: choveu, a calçada se enxuga rápido e sozinha. Para isso, porém, as pedrinhas devem ser instaladas como manda a boa técnica, sem uso de cimento ou aderentes.
A única “desvantagem” das pedras portuguesas em relação aos outros tipos de calçamento é o custo. Elas são muito mais baratas e, por conseguinte, muito menos lucrativas para quem faz as obras. Nós sabemos o que significa o custo Brasil, mas, sinceramente, já estava na hora disso mudar! Muito melhor e mais barato do que desfazer todas as calçadas e enfear o Rio era criar um curso permanente de calceteiros, que formasse mão-de-obra especializada no assentamento de pedrinhas. Fazendo a coisa certa, em breve poderíamos até exportar know-how, já que, por acaso, temos as calçadas mais famosas do mundo. No mais, é como diz o professor Cristóvão:
“Uma cidade precisa ser construída e reconstruída todos os dias, pedrinha por pedrinha, tal como os mestres calceteiros nos ensinaram ao longo da história das cidades. A força de cada pedrinha decorre da força do sistema como um todo, gerado pelo fato de todas as pedrinhas compartilharem, solidárias, o mesmo projeto de cidade.”
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Por falar em pedras: juro que, até agora, não entendi a polêmica sobre os muros nas favelas, abordada mais uma vez na página de opinião pelo secretário-chefe da Casa Civil do estado, Regis Fichtner, na segunda-feira passada. Concordo com o que escreveu. Eles não afastam pessoas, não isolam comunidades, não têm tranca nem porteira. Apenas separam as áreas construídas das matas, na (talvez vã) esperança de impedir que, um dia, não exista mais nada para separar. A comparação com muros historicamente malsãos não tem razão de ser, exceto, a meu ver, pelo fato de se chamarem muros. Tivessem sido chamados de “divisórias”, “cercas”, “salva-matas” ou qualquer outra coisa, ninguém teria dito nada; mas muros, que horror!A verdadeira questão é se vão ou não deter o avanço sobre o pouco que resta de área verde nas nossas encostas; se, a partir da sua construção, as autoridades não cruzarão os braços de vez, achando que fizeram o que tinham de fazer; se, uma vez erguidos, serão conservados, ou acabarão, derrubados, servindo de apoio para mais algumas centenas de moradias irregulares. O resto, sinceramente, me parece falta de assunto e conversa fiada.
(O Globo, Segundo Caderno, 14.5.2009)
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