7.5.09
A caminho da Índia
Do alto da minha mesinha de cabeceira, quase vinte livros me contemplam. Eles estão sendo lidos mais ou menos ao mesmo tempo, mau hábito do qual não consigo me livrar e que implica, num caso extremo como esse, a releitura de muitas páginas previamente lidas. É que, quando saio de um e volto para outro, já esqueci onde estava. Os marcadores marcam o espaço físico onde a leitura foi interrompida; o espaço do conhecimento e da lembrança fica sempre um pouco antes. Mas não há de ser nada. Isso já me aconteceu antes e consegui chegar, sã e salva, ao outro lado da pilha.
Normalmente, não leio mais do que dois ou três livros ao mesmo tempo. O número aumenta quando me interesso particularmente por algum assunto. Ao longo dos anos a mesinha foi tomada por levas de livros sobre etimologia, sobre o Império Otomano, sobre as viagens de Darwin, sobre os exploradores ingleses na África... Agora é a vez da Índia, que ando namorando há tempos e que a novela de Gloria Perez fez a gentileza de trazer à tona: tornou-se impossível entrar em qualquer livraria sem encontrar logo ali, no balcão da frente, pequenas coleções dedicadas ao país.
Nelas estão, lado a lado, três dos melhores romances que li recentemente, e que recomendei, aqui, em ocasiões distintas: “O Deus das pequenas coisas”, de Arundathi Roy, “O tigre branco”, de Aravind Adiga, e “A distância entre nós”, de Thrity Umrigar (às vezes, acho que a sonoridade dos nomes dos autores é meio caminho andado). De quebra, vêm os deliciosos contos de “Hotel Yoga”, de Maura Moynihan. Esses livros, porém, já deixaram a mesinha de cabeceira, e conquistaram espaço definitivo nas estantes.
A despeito do tema comum, a pilha que me entretem no momento é muito variada. Ela vai de uma versão do monumental Mahabharata, com 941 páginas, a um pequeno e despretensioso guia de hábitos e cultura para o viajante, com 168 páginas bem miudinhas. Entre um e outro estão os belos guias da Dorling Kindersley/Publifolha e da Insight Guides, e um especial para mochileiras (“A girl’s guide to India”, cheio de bons conselhos para qualquer mulher que viaja sozinha); “Kipling Sahib”, de Charles Allen, biografia dos anos indianos de Kipling; “The last mughal”, excelente história do motim de 1857 escrita pelo mesmo William Dalrymple que assina “A City of Djinns”, diário de um ano em Nova Delhi que recomendo para qualquer anglo-parlante, interessado ou não pela Índia; dois volumes sobre Bollywood; um livro de viagem da série “Travelers’ tales”, em que diversos autores narram as suas aventuras; “Índia, da miséria à potência”, de Patrícia Campos Mello, sem dúvida o mais saboroso livro de análise econômica que já li; os romances “Sob o sol da Índia”, de Julia Gregson, e “Paixão Índia”, de Javier Moro, para não falar em “Jogos sagrados”, de Vikran Chandra, um policial ainda mais parrudo do que o Mahabharatha, com incríveis 982 páginas; e “Indian Style”, da Taschen, um colírio cheio de fotos.
Entre tantos e tão variados livros, meu favorito, disparado, é o dicionário de Jean-Claude Carrière. É uma paixão antiga. Lançado no Brasil numa edição caprichadíssima em 2001, como parte da coleção “Olhar amoroso”, da Ediouro, ele me conquistou à primeira folheada. Bonito, bem produzido e otimamente traduzido por Claudia Fares, é o livro perfeito para se ler quando não se tem tempo, pois vem dividido em tópicos independentes que seguem o alfabeto, de Agra a Yudishsthira. O coitado passou muito tempo esgotado; agora, finalmente, foi relançado com nova capa e novo título, um sucinto “Índia”, seguindo do subtítulo “Crenças, costumes e sabedoria de uma das civilizações mais antigas do mundo”. Eu preferia a apresentação e o título anteriores, mas a tradução felizmente é a mesma, assim como o miolo bem cuidado.
Jean-Claude Carrière, um dos grandes roteiristas do cinema mundial -- é o nome por trás de “A bela da tarde”, “A insustentável leveza do ser”, e “Danton”, entre uma quantidade de obras-primas – descobriu a Índia nos anos 80, quando encenou o Mahabharatha com Peter Brook. Na ocasião, percorreu o país quase todo, enfiando-se em vilarejos perdidos, revirando idéias e preconceitos. Depois fez trinta outras viagens “mais ou menos longas”, e até hoje se surpreende: “A cada nova chegada alguma coisa salta aos meus olhos, alguma evidência, instalada ali há cinco mil anos, e que eu nunca havia notado antes”.
Não consigo imaginar guia melhor do que ele, ao mesmo tempo cético e aberto às profundas diferenças culturais que o separam do que vê. Ele conhece demais o mundo e as pessoas para cair na idéia de uma Índia “espiritual”, mas, ao mesmo tempo, observa o tempo peculiar que rege o subcontinente e que o separa de qualquer outro espaço terrestre. Mais ou menos como Churchill, que achava que a Índia não é um país, mas uma noção geográfica, como o equador, Carrière chega à conclusão de que a Índia, pela sua amplidão e diversidade, não existe – e, no entanto, existe. Vá entender! O fato é que, por causa dele, me interessei pelo Mahabharatha, que até então considerava impenetrável e, pior!, dispensável para bípedes modernos. Nada poderia recomendar melhor este lindo dicionário: um livro que consegue levar o leitor, com tanta curiosidade, a outros livros, é um livro perfeito, que atingiu o nirvana das idéias.
(O Globo, Segundo Caderno, 7.5.2009)
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