7.8.03




Sinais de vida inteligente no Planeta Celebridade

Confesso: não conhecia Paraty. Aliás, não conheço muitos lugares perto do Rio exatamente por isso, por serem perto, assim como não conheço uma quantidade de pontos turísticos da própria cidade. É que estão todos ao alcance da mão, e quando sobra um tempo — que é o que sempre falta — a gente tende a correr atrás do que está longe. Vá entender.

Mas comecei a corrigir esta falha na minha cultura no fim-de-semana passado, durante a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, evento que realmente fez por onde merecer o saboroso nome de festa.

Foram três dias de convívio tão harmonioso entre escritores e leitores que, muitas vezes, era difícil separar as categorias e saber quem era quem. Até porque todo escritor é, antes de mais nada, um leitor — e a maioria dos leitores, em Paraty, trazia um livro ou dois escondidos na mochila, para distribuir entre os colegas mais conhecidos.

Além disso, várias pessoas que ganham a vida escrevendo estavam lá na simples condição de turistas das letras, sem missão profissional ou participação na agenda oficial. Este era o caso de tradutores, ensaístas e pesquisadores; e caso também da leitora que vos escreve, que volta e meia esbarrava em ótimos e queridos companheiros.

Como disse o Joaquim (Ferreira dos Santos), uma das coisas que atraíram tantos cronistas a Paraty foi, justamente, a caça interminável ao assunto. No meu caso específico, admito uma outra motivação: a caça interminável às imagens. Imaginei que, na remota hipótese de que nada por lá me levasse a escrever, certamente muito me levaria a fotografar.

Um dos resultados da segunda caçada está aí, ilustrando a página; mas não foi uma escolha fácil. Junte-se uma vila colonial à beira-mar, tão arrumadinha e perfeita que chega a parecer cidade cenográfica; uma multidão alegre espalhada por locações atraentes; pesos pesados internacionais como Eric Hobsbawn e Julian Barnes; leitores de máquina fotógrafica e caneta em punho, atrás de fotos e de autógrafos — e pronto, aí está o paraíso para qualquer fotógrafo. Até para mim, que não gosto de fotografar pessoas, mas não resisto a um bicho faceiro.

A cidade tem, por sinal, um sério problema animal. A quantidade de cães de rua é alarmante. Todos os que encontrei foram amistosos, e estão obviamente acostumados a conviver com gente — sobretudo, a conviver bem com gente. Nenhum foi arisco ou agressivo, e a maioria não me pareceu descontente. Muitos, no entanto, estão magricelas e maltratados, com bernes, machucados e outras mazelas que afligem vira-latas. Fiquei preocupada com eles e, para dizer a verdade, mais preocupada fico em escrever a respeito disso, já que no Brasil, infelizmente, a primeira coisa que vem à cabeça das autoridades quando se fala em bichos abandonados ainda é acabar com eles; mas que os simpáticos cães de Paraty mereciam um trato, lá isso mereciam.

* * *


Outra coisa a merecer um trato é o famoso calçamento de pedras. Sei que isso soa como heresia suprema aos ouvidos dos defensores do Patrimônio Histórico, mas duvido que o calçamento fosse tão irregular nos tempos d’antanho, com aquele monte de escravos disponíveis para ajeitar as ruas e aquela aristocracia com seus calçados finos. E, mesmo que fosse — bem, naquele tempo também se atirava o conteúdo dos urinóis à rua, e nem por isso se deixou de instalar banheiros nas casas. Deve haver alguma solução sensata.

* * *


Quem já foi a Paraty sabe do que estou falando. É impossível andar sem olhar para o chão, o que, com toda aquela beleza em volta, acaba sendo um tremendo contra-senso.

* * *


Eric Hobsbawm, o autor mais festejado da temporada, tomava café sozinho todos os dias, acompanhado de um bom livro. A estratégia é (quase) infalível para afugentar tagarelas indesejados. Já eu deixava os livros no quarto: achei o máximo tomar café da manhã com vista para Eric Hobsbawm.

Também gostei muito da forma como o pessoal da pousada resolveu o problema do complicadíssimo nome do professor:

— Seu Eric, aceita mais um chazinho?

* * *


Uma das coisas interessantes da Flip era ver os escritores soltos, passando os dias a seu bel-prazer. Com exceção das palestras, havia pouco em termos de programação oficial, e, se por um lado isso resultou em certa falta de entrosamento entre os que não se conheciam, por outro deu a quem não participava diretamente da Festa uma chance maior de contato com os autores.

Foi divertido — e muito bom — observar intelectuais como Ana Maria Machado, Ruy Castro ou Ferreira Gullar (para ficar em apenas três exemplos) sendo tratados como artistas ou roqueiros. Numa sociedade em que a única prova de que alguém deu certo é a celebridade, ver holofotes brilhando sobre gente que nunca participou de um “Big Brother”, não trabalha em “Malhação” e não costuma sair nas revistinhas de “VIPs” foi uma inversão de valores das mais alvissareiras.

(O GLOBO, Segundo Caderno, 7.8.2003)

Nenhum comentário: