15.8.03





A educação pela pedra

As polêmicas, às vezes, estão onde menos se espera encontrá-las. Dessa vez, elas estavam me aguardando escondidinhas, disfarçadas entre as pedras de Paraty. Eu sei — ninguém agüenta mais ouvir falar em Paraty, mas juro que essa crônica não tem nada a ver com literatura: tem a ver com as pedras, e com a facilidade com que certos mitos se consolidam em torno de noções completamente erradas.

Não fui tão radical quanto o Joaquim Ferreira dos Santos, que sugeriu um asfaltozinho básico para melhorar a circulação pela cidade, mas observei que me parecia impossível que aquele famoso calçamento fosse o desastre que é hoje nos tempos antigos. Até porque, nos tempos antigos, as pessoas não se davam conta de que estavam vivendo em tempos antigos, e certamente se preocupavam mais em andar direito do que em preservar o seu pitoresco patrimônio para os pósteros.

Para quê?! Choveram-me explicações e aulas de História por todos os lados: então eu não sabia que as pedras eram assim porque o ritmo de vida era diferente? Que antigamente andava-se devagar? Que a idéia era justamente mergulhar com calma no passado?

Alguns leitores se confessaram chocados com a minha falta de sensibilidade artística. Um chegou a descrever o calçamento como “poético” — abrindo com isso, para mim, toda uma nova teoria etimológica para “versos de pé quebrado”.

O apoio, curiosamente, veio de onde eu menos esperava: do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

— Você tem toda a razão em reclamar desse aspecto da cidade — escreveu o historiador Luiz Cristiano de Andrade, que está trabalhando no inventário de bens imóveis de Paraty.

— O calçamento é uma aberração — confirmou a arquiteta Laura Bahia Ramos.

Os dois me explicaram tudo. Para começo de conversa, o calçamento é bem mais recente do que eu imaginava: foi feito apenas no século XIX, quando se projetaram os primeiros planos urbanísticos. Antes disso, as cidades tinham arruadores, que eram empreiteiros responsáveis pela abertura e manutenção das ruas.

Em fins do século XVIII, por exemplo, um certo Antônio Fernandes da Silva teve que prestar contas à Câmara de Vereadores, porque estava inventando um traçado por demais sinuoso.

Sua explicação foi prontamente aceita pelos esclarecidos edis: ele fazia aquilo para evitar o vento encanado. Que, como sabemos, era coisa das mais temidas até meados do século passado, quando foi definitivamente desmoralizado por seu primo rico da América, o ar refrigerado.

Mas voltando ao nosso pé-de-moleque: as ruas eram não só lisas como cobertas de terra batida, entre uma pedra e outra, para ficarem bem certinhas. A ligeira forma de V que conservam até hoje servia para que a maré subisse através delas, mas esse encantador hábito romântico das águas tinha uma razão bastante prosaica: o esgoto das casas era atirado pela janela, e a maré, que então ia até o meio da cidade, carregava a porcaria toda consigo quando baixava. Mais engenhoso, impossível.

Ainda assim, os tempos mudam, os hábitos se refinam e as narinas ficam cheias de nove horas. Em 1980, foi feita uma grande obra de saneamento básico na cidade. Retiraram-se as pedras, instalaram-se canos, recolocaram-se as pedras. E aí...

Bem, acontece que fazer esse tipo de calçamento não é tão fácil quanto parece. Ainda que rudimentar, o assentamento de pedras, sobretudo num solo argiloso como o de Paraty, tem seus segredos — todos solenemente ignorados pela empresa que fez as obras de saneamento básico nos anos 80.

Que, pelo que se viu posteriormente, ignorava também os segredos básicos do saneamento. A tubulação que instalou não funciona mais. Há tubos entupidos com areia, tubos quebrados, tubos que pura e simplesmente nunca funcionaram.

Paraty é forte candidata ao título de Patrimônio Mundial da Unesco, que a considera o conjunto arquitetônico colonial mais harmonioso do mundo, mas para recebê-lo vai ter que resolver este problema — e, de lambuja, fazer uma rede elétrica subterrâna, escondendo a fiação que hoje enfeia a paisagem.

Motivos, portanto, não faltam para um novo quebra-quebra.

Meus amigos do Iphan dizem que o pessoal da secretaria de obras de Paraty é muito cuidadoso e está atento às dificuldades que envolvem os vários projetos para a cidade, mas andam alarmados com duas coisas.

Uma é o crescimento descontrolado, proporcionalmente pior do que o de Ouro Preto, onde há quase 1.500 casas no perímetro do centro histórico — ao passo que, em Paraty, há um terço disso, se tanto.

A outra é o automóvel, este verdadeiro câncer urbano. Durante o último quarto de século, Paraty esteve virtualmente fechada à circulação de veículos. De uns tempos para cá, no entanto, já há quem esteja dando um jeitinho de abrir as correntes para entrar com o carro.

Se essa moda pega, não haverá calçamento — ou beleza — que resista.

(O GLOBO, Segundo Caderno, 14.8.2003)

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