A bunda explícita e a intimidação estética
De todo o auê gerado em torno da montagem de “Tristão e Isolda” no Teatro Municipal, o que mais me surpreendeu foi a atitude do delegado Álvaro Lins, cioso funcionário público, que imediatamente deu início a investigações para saber se a bunda exibida pelo diretor tinha “correlação com o evento artístico”, ou se foi mesmo um “desrespeito aos espectadores”. Por pouco não pediu um hábeas-corpus localizado.Eu, ingênua que sou, achava que a polícia carioca tinha mais o que fazer. Até porque, por ofensiva que seja, uma bunda exposta, a mais ou a menos, não vai fazer a menor diferença no nosso panorama cultural — se ainda podemos chamá-lo assim. O delegado deve andar meio afastado da cena artística, o que talvez seja até louvável.
Teatro não é lugar para a polícia em ação, nem supostos desrespeitos a espectadores se resolvem com inquéritos. Nós já vimos filmes parecidos com esse e não acabaram bem.
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Dito isso, esclareço ao delegado, apenas a título de colaboração “artística”: não só a bunda, também grande parte da montagem e das reações subseqüentes na mídia por parte dos mentores e feitores do espetáculo foi, sim, um desrespeito aos espectadores. Sobretudo aos que o vaiaram.
A vaia é direito sagrado do público, uma forma absolutamente legítima e democrática de protesto. Não cabe a quem ofende julgar se ofendeu e quanto; o ofendido é que sabe onde lhe dói a estética, e quanto lhe encheram o saco. Se o diretor tem o direito de fazer o que quer no palco, deve aceitar que o público, na platéia, mande ver. É seu direito manifestar-se a respeito do que viu, sem ser imediatamente rotulado de conservador, ignorante ou — absoluto e ridículo golpe baixo — nazista.
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O que assistimos ao longo de toda a semana foi, mais uma vez, o velho jogo da intimidação estética, que esmaga qualquer dissidência. Não há mais produção cultural — ou mero entretenimento — ruim; o que há é gente que não chegou lá, que não está na onda, não é “cabeça” suficiente para perceber o lirismo da cena da masturbação na abertura (sem trocadilho), a grandeza poética da suruba da Cena XXV ou o retrato da índole descontraída e folgazã dos brasileiros na dança da boquinha da garrafa.
Alguém com desagrado e coragem para dizer que a “Egüinha Pocotó”, por exemplo, não é propriamente uma boa canção infantil, ou que a moral da televisão, de modo geral, deixa a desejar, é logo jogado na lata de lixo da genial ignorância muderna.
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Aliás: alguém que ouse simplesmente pronunciar a palavra “moral” nos dias de hoje é, claro, uma criatura sem o menor poder de discernimento, incapaz de entender até o comportamento de Bush e Blair. Pois a moral é, como ninguém ignora, um conceito pequeno-burguês inteiramente ultrapassado, do qual nos livramos em meados do século passado.
Reagir contra a baixaria e a pobreza mental generalizadas em que estamos mergulhados é receber, automaticamente, um atestado indelével de caretice — que, na geléia malsã das nossas idéias semidigeridas, equivale a uma postura “de direita”, ou seja: à mais primitiva forma de vida do planeta.
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Quando se fala em censura, todos nós reagimos contra, ainda traumatizados com os anos de violência da ditadura; mas ninguém parece perceber — ou têm, todos, medo de perceber — a censura constante e opressora que vem, há tempos, sendo imposta ao público pelos produtores culturais, apoiados numa mídia que lhes faz eco.
Pois ando cheia disso tudo. Não agüento mais a indigência mental e a vulgaridade escancarada que se ouve no rádio, se assiste na televisão e, com já lamentável freqüência, se encontra no teatro.
Não tenho nada a ver com isso, assim como não tenho nada a ver com o subproduto mais triste para mim dessa calhordice toda — a cafajestagem descontrolada que assumiu o lugar antes ocupado pela liberação feminina, em que a falta de inteligência e de elegância é cultivada como grande conquista intelectual da “nova mulher”.
Eu fecho com quem sai no fim do primeiro ato, com quem desliga a TV e se refugia nas livrarias. Sei que sou (somos) voto vencido: o mercado não está interessado em idéias, mas em números. A qualidade do que se apresenta é irrelevante diante da “polêmica”, já que não faz sucesso necessariamente quem tem algo a dizer, mas quem ganha “espaço na mídia” — uma medida de aferição acima de qualquer discussão num mundo em que a máxima aspiração artística é mostrar a bunda.
(O Globo, Segundo Caderno, 28.8.2003)
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