O palíndromo e os paradoxos
Sexta-feira, 28 de dezembro de 2001: escrevo a última coluna de 2001, primeiro ano do resto de nossas vidas. Como todo mundo, eu também fiquei imaginando a minha retrospectiva do ano, mas por mais onda que a M$ tenha feito em torno do XP, por mais que a Apple tenha badalado o iPod, por mais spam que eu tenha recebido e por mais que me tenha entusiasmado com os blogs, 2001 foi o ano da imagem única.O mundo nunca viu nada sequer remotamente parecido com o choque dos Boeings contra as torres do WTC; e quando digo viu, estou usando o verbo na sua mais precisa acepção. As bombas que caíram sobre Hiroshima e Nagasaki foram filmadas de longe, cogumelos sem grande força visual; os filmes e fotos das duas cidades destruídas foram feitos depois, em meio aos escombros, assim como foram feitos quase todos os filmes de desastres, calamidades, estupidez humana.
Nunca, numa paisagem conhecida como aquela, num dia claro como aquele, câmera alguma captou, com tal riqueza de detalhes, o momento exato de uma destruição em tal escala. A horripilante bola de fogo da explosão foi coisa de segundos; depois, o cinza compacto da poeira e da fumaça, seguido da queda dos edifícios. Mas a imagem gravada nas nossas retinas é a do avião que se aproxima e explode, que se aproximou e explodiu centenas, milhares de vezes em todos os canais de televisão. Apenas alguns segundos, e 2002, e todo o milênio em que ele se insere, começaram com quatro meses de antecedência. Diante desta imagem que nenhum de nós jamais será capaz de esquecer, é difícil lembrar que outras coisas aconteceram em 2001. Mas aconteceram, por incrível que pareça.
Sim, o Windows XP chegou finalmente ao mercado, embora ainda não com o ímpeto que a M$ teria desejado. E sim, ele é aparentemente um bom sistema operacional, mas está longe de ter sido o acontecimento do ano — terrorismo ou não terrorismo.
O acontecimento do ano foi, para mim, a retomada da internet pelas pessoas físicas. Entenda-se: elas nunca saíram da rede, e em momento algum deixaram de tecer as teias da usenet, das listas, dos grupos de discussão, dos chats, dos blogs. Estavam, porém, sendo ignoradas por um mundo tão atento às pessoas jurídicas da rede, que nem se dava conta de que havia gente por lá. Só se falava nos grandes portais, nas ponto.com que nasceram e morreram às centenas (só em 2001 foram mais de 500 ponto.com falidas, e isso apenas nos EUA) e nas sopas de letrinhas que resolveriam todos os problemas da humanidade: B2C, B2B, M2M.
Quando setembro chegou, no entanto, descobriu-se o que as pessoas mais antenadas sempre souberam: gente quer ouvir gente, gente precisa de gente. Simples assim.
2001 foi marcado pelas ponto.com falidas, por vírus e worms, por uma quantidade de spam sem precedentes (inferior apenas àquela da qual estarei me queixando na última coluna de 2002) e, de modo geral, por um grande desânimo na área, acentuado pelas constantes derrotas que as grandes corporações vêm obtendo na justiça (?) americana contra os direitos dos indivíduos.
Em 2002, o último palíndromo das nossas vidas (o outro foi 1991), preparem-se para ouvir falar em segurança, em peer-to-peer (a paradoxal herança do Napster, que sequer era 100% peer-to-peer) e em blogs. Contrariando todo o bom senso, que recomenda que não se façam essas coisas por escrito, vaticino: quem não entender plena e perfeitamente o sentido da palavra interatividade, dança.
(O Globo, 31.12.01)
Foto: cortesia involuntária do NYT (Steve Ludlum)