5.2.09


Uma família carioca tenta
sobreviver... aos cariocas

Em julho de 2005, escrevi sobre a saga dos quero-queros do campo de beisebol, que acompanhava desde que se estabeleceram na minha querência. De todas as vezes em que os vi tentar constituir família (e não foram poucas), apenas uma deu certo, porque, afinal, milagres também acontecem com quero-queros. Imaginem a viabilidade de um ninho no chão, num campo de esportes, entre dois quiosques, à mercê de bolas e crianças, inundações, cachorros, espetáculos diversos e, sobretudo, gente má. Muita gente má!

Apesar da óbvia falta de talento para escolher residência, os dois eram pais extremosos, que atacavam com fúria quem ousasse se aproximar do ninho. Não adiantava nada, mas eles faziam o que podiam — inclusive fingir, com grande poder de convicção, que estavam feridos, para atrair potenciais predadores e afastá-los do lar.

Quando o quero-querinho que vingou nasceu, o zelo foi redobrado. Se fotos tivessem som, vocês ficariam impressionados com o estardalhaço que acompanhou a dessa página — e isso que, quando a fiz, o bichinho já nem era tão pequeno, e já voava muito bem, obrigado. Reparem só: os pais, maiorzinhos, vão na frente, aos gritos. O filhote, um pouco menor, voa atrás, de bico fechado.

* * *

Depois disso, passei a ver os quero-queros esporadicamente. Às vezes eles ainda aparecem no campo de beisebol e, sobretudo, na beira d'água, mas nunca mais, ao menos que eu tenha visto, tentaram repetir a experiência de criar filho em local tão inadequado. Gosto muito de observá-los quando andam por lá, e cansei de imaginar aonde teriam achado pouso. Eis que, em fins do ano passado, recebi um email da Maria Fernanda Ferraz que, involuntariamente, lançou luz sobre o paradeiro dos meus quero-queridos:

“Um casal de quero-queros se mudou esse ano para Lagoa, mais precisamente para a praça em frente ao Corte de Cantagalo, — escreveu ela. — Bem, o adorável casal resolveu fazer ninho nessa praça. Tempos depois, como era natural, nasceram três filhotinhos e, justo quando já estavam empenadinhos, de um dia para o outro desapareceram. Passou-se um tempo, o casal fez outro ninho, e, dessa vez, acompanhei de perto, gritando com os pedestres que os atazanavam. Alguns vizinhos também se sensibilizaram. Num domingo, quando eu não estava em casa, meus pais viram um imbecil soltando propositalmente os cachorros, que, apesar do desespero das pobres aves que se esgoelavam, comeram os ovos. Agora, pela terceira vez, estão com um ninho, mas a perversidade de alguns freqüentadores da fatídica praça parece cada vez maior. Tem gente que solta os cães, tem gente que joga pedra nas aves... Pessoas atirando pedras contra as coitadinhas, pode?! Eu não entendo, elas só querem fazer seu ninho e ficar em paz! Não sei o que fazer, só tenho vontade de chorar.”

Só podiam ser eles. Atravessaram a rua para um lugar que imaginavam mais seguro, e lá estavam, pelo visto, enfrentando os mesmos problemas... enquanto a Maria Fernanda, coitada, enfrentava os mesmos sentimentos que tanto me fizeram sofrer quando os bichinhos moravam lá em frente de casa. Fui visitá-los algumas vezes enquanto chocavam, e fiquei torcendo para que, dessa vez, tivessem mais sucesso. Na quinta passada, um novo email, esse do José Roberto Gimael, trouxe notícias. Boas e ruins:

“Acompanho a saga de um casal de quero-queros, que insiste em fazer ninho ao lado da estátua do general San Martin. O pobre casal é atormentado por cães e mendigos, que por várias vezes já destruíram seus ovos. Uma família chegou a soltar seus cães para perseguirem e comerem os filhotes, que já estavam crescidinhos. A duras penas e com muito estresse, os pobres quero-queros conseguiram agora criar três filhotes, que correm risco eminente de serem devorados ou mortos. Ainda ontem, briguei com um mendigo que tentava bater nas aves com um guarda chuva.”

Enfim, os filhotinhos vingaram. No sábado, não sei se vocês viram, o Ancelmo publicou uma foto do José Roberto, linda, em que o grupo aparece completo: os pais em alerta e os três filhotes todos espevitados. Infelizmente, porém, eles continuam expostos à maldade humana. Acho excelente que o prefeito esteja promovendo o choque de ordem de que esta cidade tanto precisava, mas temo que ele de nada adiante sem um choque de ordem na alma das pessoas. Não sei o que fazer para proteger as avezinhas, caros amigos José Roberto e Maria Fernanda. A única cura eficaz que conheço contra estupidez e boçalidade é a educação, no sentido mais amplo da palavra, mas o processo é lento e, cá entre nós, duvido que funcione depois de certa idade. Só nos resta torcer pela pequena família.


(O Globo, Segundo Caderno, 5.2.2009)

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