Ele estava escondido num cantinho da Livraria da Travessa, mas chamou minha atenção porque tem um Ganesha todo colorido na capa. O resto não me dizia rigorosamente nada: nunca tinha ouvido falar no livro (“Hotel Yoga”), na autora (Maura Moynihan) ou, sequer, na editora (Seoman). Ora, não pretendo ter um conhecimento universal do mercado editorial, até mesmo porque isso é impossível, mas, caramba!, três zeros no meu radar eram um absurdo total, uma acusação de ignorância que eu não podia deixar passar só assim.
As orelhas têm recomendações de dois nomes no mínimo exóticos para um livro de contos: Ismail Merchant, o cineasta, e John Kenneth Galbraith, o economista. Têm também um retrato da autora (bonita!) e uma breve informação biográfica: trabalhou com refugiados na Índia e no Nepal, fez parte da turma de Andy Warhol, é filha de Daniel Patrick Moynihan (o que explica a recomendação de Galbraith), e “divide o tempo com amigos e a família entre as cidades de Nova York e Nova Delhi”. Pelo visto, uma socialite nova-iorquina com boas intenções, ótimas conexões e muito tempo livre. Já vi esse filme algumas vezes, e nunca me interessou.
Folheei o livro; a editora havia feito um trabalho gráfico carinhoso, e fiquei envergonhada por ser tão preconceituosa. Encurtando a história: levei “Hotel Yoga” para casa. E querem saber o quê? O livro não é bom; o livro é ótimo! Maura Moynihan tem imaginação, tem um senso de observação fantástico e não raro cruel, e um humor tão sutil que, às vezes, quase se perde pelo meio do caminho.
O tema dos seis contos de “Hotel Yoga” – na verdade cinco, já que “Masterji”, com 70 páginas, está mais para novela – é essencialmente o mesmo, a incompreensão e a impossibilidade do encontro entre estrangeiros e indianos, entre duas culturas que se misturam como, digamos, azeite e vinagre.
O livro é povoado, por um lado, por diplomatas entediados e ocidentais ricos em busca de elementos exóticos e de espiritualidade a bom mercado, e, de outro, por funcionários do governo ora corruptos ora prepotentes, empregados de vários tipos loucos para ir embora da Índia e ricas donas de casa de Nova Délhi. Todos usam-se uns aos outros com diferentes fins, mas ficam genuinamente surpresos quando se descobrem usados. Maura Moynihan lança sobre seus personagens um olhar entre o cínico e o irônico; as piores farpas, porém, guarda para os pretensos salvadores da humanidade que, diante da possibilidade de salvar pessoas, fogem correndo.
* * *
Fui à internet buscar mais informações sobre livro e autora, que a meu ver deveriam ter páginas e páginas de referências, e fiquei chocada em descobrir quão pouco um e outra foram comentados pelo establishment literário. Tentei imaginar as razões pela qual essas pequenas jóias tão bem lapidadas não tiveram maior repercussão. Acredito que, além do preconceito que eu mesma tive que conter quando peguei “Hotel Yoga” na livraria, Maura Moynihan foi vítima, também, do desprezo americano pelo conto, visto como uma forma literária menor. Grande pena: os leitores não sabem o que estão perdendo.* * *
A edição brasileira me deixou confusa. Como escrevi antes, ela teve um projeto gráfico simpático e agradável, ainda que eu preferisse o glossário no fim do livro, e não no começo. Além disso, foi muito bem traduzida por Alessandra Mussi – o texto não tem anglicismos desnecessários e lê-se com facilidade. Porém, e aí há um grande, imenso porém, faltou ao livro um mínimo de revisão. Basta dizer que, a certa altura, dois ratos correm “sob a calda do tigre”. Esse estranho felino em compota foi a pedra mais dura nas deliciosas chinelinhas do “Hotel Yoga”, mas há inúmeros pedregulhos pelas páginas. Meu conselho para a editora é que, no mínimo, publique uma errata, e que faça uma edição mais cuidada da próxima vez. Meu conselho para os leitores é que deixem isso para lá, comprem o livro e mergulhem de cabeça nas histórias dessa escritora que tem tanto o que contar.* * *
Ao contrário de “Hotel Yoga”, “O tigre branco”, de Aravind Adiga, editado pela Nova Fronteira, está exposto em lugar de grande destaque, não só na Travessa, como em todas as livrarias do mundo. O romance ganhou o prestigiadíssimo Man Booker Prize do ano passado e, graças a isso, adquiriu visibilidade imediata e universal. E, acima de tudo: merecidíssima. Aravind Adiga inventou um dos melhores personagens dos últimos tempos, Balram, que começou a vida nas trevas da Índia profunda e se transformou em próspero e loquaz homem de negócios em Bangalore.Tão original quanto Balram é a fórmula do romance: um conjunto de cartas escritas pelo próprio para Wen Jiabao, o primeiro-ministro chinês, que, segundo a rádio local, visitaria o país para conversar com empresários indianos e descobrir o segredo do seu sucesso. Balram considera-se particularmente bem situado para contar ao camarada algumas verdades sobre a Índia; e isso é o que faz, ao longo de sete noites e 263 páginas.
A Índia de Balram é o lado escuro da lua, o lixo varrido para baixo do tapete, a outra face da novela; é a Índia das legiões de miseráveis que fazem tanto sucesso em fotos artísticas P&B, dos seres espezinhados que apenas aguardam a vez de espezinhar quem está em situação ainda pior, da corrupção endêmica que corrompe o país de alto a baixo. O livro é uma obra-prima, e leitura arrepiante para brasileiros porque, ainda que seja ficção, nós também sabemos uma ou duas coisas sobre desigualdade social e corrupção para perceber que a verdade não está muito longe.
(O Globo, Segundo Caderno, 19.2.2009)
Em tempo, e por falar nisso: Slumdog Millionaire é genial!
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