Está ficando difícil responder a uma das mais simples perguntas da vida brasileira: “Você gosta de carnaval?” Houve um tempo em que a questão era quase binária, “sim” ou “não”, e em que as alternativas não envolviam muitas conjunções adversativas. Gostar de carnaval podia significar uma ou várias de muitas coisas, não raro todas ao mesmo tempo: ir a bailes, usar fantasia na rua, conhecer os sambas e as marchinhas, assistir aos desfiles. Não gostar de carnaval significava, em geral, fugir para a serra ou para a praia, ou, para quem ficava por aqui, estudar a programação dos cinemas para tirar o máximo proveito da falta de fila, curtir as praias desertas e andar pela cidade vazia como se, durante alguns dias, ela fosse só nossa.
Agora complicou, sobretudo para quem costumava responder “sim”. Tiro por mim: sempre adorei assistir aos desfiles das escolas, fiquei encantada quando o carnaval de rua voltou e saia correndo com a câmera atrás dos blocos. Nunca me cansei de ver a criatividade das pessoas para inventar fantasias. No domingo mesmo, quando três rapazes passaram em frente à minha janela usando cones de trânsito na cabeça, liguei empolgada para a Laura, de divertidos que estavam. Mas...
Pois é. Não há mais nada simples no mundo, muito menos o carnaval carioca. Acho excelente termos novamente um carnaval de rua cheio de energia, mas acho péssimos os rumos que este carnaval vem tomando. Blocos que eram apenas alegres confrarias de gente empolgada, como o Simpatia ou a Banda, viraram amontoados sufocantes de pessoas cujo único propósito parece ser terminar o dia em coma alcoólico. Aos blocos que querem continuar pequenos, divertidos e familiares só resta a alternativa de sair em horários cada vez mais esdrúxulos, de lugares mantidos em rigoroso segredo pelos freqüentadores habituais. Ora, tem graça isso?!
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A Lagoa é razoavelmente livre de maiores confusões, mas recebi tantos telefonemas desesperados esse ano que fiquei impressionada. Amigos menos afortunados, ilhados em casa por causa de blocos, precisavam desabafar: uns não conseguiam tirar o carro da garagem, outros não tinham ânimo de descer e atravessar a multidão compacta para ir até a padaria, a maioria não agüentava o som amplificado que ressoava como se a bateria estivesse plantada logo ali, na sala. Uma amiga que tem o particular azar de morar em frente a Sendas, no Leblon, onde dez entre dez ambulantes repõem os estoques e eventualmente ficam acampados, passou o carnaval em claro com o barulho e a gritaria generalizados. Para não falar na queixa universal de todo mundo: o insuportável fedor de xixi que toma conta da cidade. Bons tempos em que carnaval tinha cheiro de lança-perfume!* * *
Está certo que é só uma semana, que diversão é bom e a gente gosta, mas o carnaval de rua precisa, urgentemente, de um choque de ordem. Não é justo submeter a cidade inteira a engarrafamentos sem fim, decibéis sem limite e mijões sem educação. Como fazer para que os direitos de quem gosta e os de quem não gosta de carnaval sejam respeitados? Não sou especialista no assunto, não trabalho na prefeitura nem administro bloco, mas algumas coisas parecem óbvias. Não há bairro, por grande que seja, que suporte a saída de dois ou três mega-blocos no mesmo dia; nem é possível que pare tudo só porque é carnaval.Ao mesmo tempo, não basta pôr uns poucos banheiros químicos aqui e ali; eles têm que ser distribuídos, com generosidade, ao longo do percurso. É bem verdade que não adianta nada encher a cidade de banheiros químicos se todos continuarem a achar muito natural urinar onde bem entendem. Aí acho que os blocos teriam de assumir a sua responsabilidade e dar um choque de vergonha na cara nos marmanjos folgados. É questão de atitude básica. Aposto que, no dia em que mijar pelos cantos voltar a ser universalmente considerado o mico ridículo que de fato é, a turma dá um jeitinho de se segurar até o próximo banheiro.
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Fui ao sambódromo na segunda-feira. Gostei do samba da Portela, do desfile do Salgueiro, de algumas alas da Imperatriz – mas confesso que saí decepcionada. O espetáculo continua grandioso e único, sempre empolgante à passagem das baterias, e os carros estão no geral cada vez mais sofisticados, mas tudo me pareceu muito igual, muito... pasteurizado. Poucas fantasias se destacavam pela originalidade ou mesmo pela beleza; pelo menos para o meu gosto, os desfiles foram pesados, previsíveis.O detalhe realmente diferente da temporada foi a presença inesperada de um simpaticíssimo vira-lata, que seguia pelas alas como um verdadeiro folião. O cãozinho estava super à vontade na passarela e fez a alegria de quem o viu. Quando voltei para casa e fui para o computador, soube que virara celebridade, com direito a foto e manchete no G1. Não sei o que aconteceu com ele, mas espero que encontre um bom dono e seja feliz por muitos e muitos carnavais.
(O Globo, Segundo Caderno, 26.2.2009)
Tem mais fotos do carnaval aqui:
Carnaval 2009 |
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