24.7.08


Mundo, mundo,
vasto mundo

Cronista sonha com uma viagem divina, mas
encanta-se com o relato de uma ida ao inferno



Há uma agência de viagens canadense chamada Butterfield & Robinson que é meu sonho de consumo desde que tomei conhecimento de sua existência. Se não me falha a memória, nos encontramos (eles não sabem; mas assim é a vida, cheia de amores platônicos e relações unilaterais) num daqueles práticos cartõezinhos que costumam vir nas revistas de viagem estrangeiras, nos quais marca-se com um x as informações que interessam, manda-se pelo correio e a revista cuida do resto.

Esses cartõezinhos eram mais comuns, e faziam mais sentido, antes de todo mundo ter internet; e um dos meus hobbies era preencher os quadradinhos que me pareciam atraentes, despachar o cartão e esperar o que me traria o carteiro. Além de pequenas amostras do mundo, os folhetos e catálogos que recebi foram, em si, uma boa aula de marketing aplicado. Folheando-os ao longo do tempo, cheguei à conclusão de que não há um centímetro quadrado do globo terrestre que não possa ser vendido como destino turístico imperdível, desde que seja apresentado com um mínimo de competência.

Pois a Butterfield & Robinson, além de fazer os catálogos mais lindos de todos, faz exatamente o tipo de viagem dos meus sonhos: a pé ou de bicicleta, mas com m-u-i-t-o conforto pelo caminho. Os meus sonhos são sempre assim, bem simplinhos, de jeans e camiseta, mas mais caros do que viagem a Dubai em tapete voador; de modo que tendem a permanecer eternamente como o que são, sonhos. Agora, pela primeira vez, dois amigos se aventuraram numa viagem B&R de bicicleta pela Toscana, e voltaram entusiasmados: o catálogo não é propaganda enganosa! De modo que ando pensando seriamente em quebrar os porquinhos de barro e, no ano que vem, estrear o joelho novo num caminho qualquer pela África ou pela Ásia. No mínimo, no mínimo, volto com um punhado de crônicas.

* * *

No quesito aventura, porém, vai ser difícil para qualquer pessoa no mundo fazer algo tão radical quanto a viagem de Rory Stewart, um escocês maluco que resolveu atravessar o Afeganistão a pé, sozinho, pelos caminhos mais difíceis. A seu favor, o fato de parecer de qualquer lugar, menos de um país anglo-saxão; a experiência prévia de ter atravessado a pé Irã, Índia, Paquistão e Nepal; e de falar meia dúzia de dialetos persas. Ainda assim, pegar um cajado e sair por uma das regiões mais conturbadas do planeta, na pior estação do ano, requer uma mistura de coragem e de insensatez muito rara. Voltar para contar a história requer uma sorte mais rara ainda.

A aventura está em “Os lugares do meio” (Record, 335 páginas, ótima tradução de S. Duarte), um dos livros de viagem mais fascinantes que já li. Rory viajou de Cabul a Herat em pleno inverno, logo depois da queda do Talibã, em 2002, quando faltava energia elétrica em quase todo o país e a única tecnologia estrangeira na maioria das casas era, como ele mesmo diz, um rifle Kalashnikov. O vácuo de poder tornava a região ainda mais confusa do que de costume; ninguém sabia o que estava valendo, se é que algum dia soube; a pouca ordem que havia seguia um padrão tribal mais condizente com a Baixa Idade Média do que com o Século XXI.

Acrescente-se a isso a quase inexistência de estradas, a natural desconfiança de todos diante de um estrangeiro por aquelas paragens (o que é que uma pessoa normal poderia estar fazendo num lugar daqueles, de livre e espontânea vontade?!), os campos minados, a comida escassa, e pronto, aí está, em linhas gerais, o cenário atravessado pelo nosso herói. Rory hospedou-se nas casas dos se dispuseram a acolhê-lo, dormiu nos cantos que lhe pareceram seguros, comeu o que lhe foi oferecido. Notícias de banho são constrangedoramente escassas.

O retrato que traça do país, contudo, mostra o tamanho da ignorância de qualquer governo estrangeiro que pense em dominá-lo. Alguém deveria dar rapidamente um exemplar a Barack Obama, antes que ele seja eleito e meta os pés pelas mãos. Seria leitura utilíssima. Cada vilarejo é um feudo, ligado aos outros por fios frágeis demais para elevar o espírito humano acima de qualquer coisa além do mais básico instinto de sobrevivência. Às vezes, nem isso: mata-se por nada, morre-se por menos ainda. As notícias demoram a chegar, o poder central é relativo, “amigo” e “inimigo” são palavras que mudam ao sabor do vento. O que havia de civilização, e que já não era muito, foi pulverizado pelos talibãs.

Tirando o fato de empreender uma viagem dessas e escapar com vida, o maior talento de Rory Stewart é saber observar o mundo, aos outros e a si próprio sem qualquer traço de pieguice. Ele aceita as pessoas que encontra, e com quem convive, pelo que são; não tem preconceitos aparentes, nem entra em julgamentos morais. Ali estão homens (ele quase não encontra mulheres) num mundo hostil, enfrentando situações adversas, tentando sobreviver como podem. Como bom repórter, conta o que viu, o que lhe disseram, o que apurou. Não faz estardalhaço do seu admirável destemor, do seu humanismo à flor da pele e da sua travessia heróica.

O resultado é a obra-prima que escreveu só assim, como quem conta uma história. Ou como quem atravessa o inferno a pé porque, afinal, ele está lá.


(O Globo, Segundo Caderno, 24.7.2008)

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