31.7.08


Considerações sobre um assalto

Hoje, exatamente hoje, 31 de julho de 2008, faço 55 anos, quase todos passados no Rio de Janeiro. Até sábado passado, nunca tinha sido assaltada aqui, na minha cidade, o que deve ser uma espécie de recorde, especialmente considerando-se que costumo andar por todo canto, em toda espécie de horário. Fui vítima, com minha irmã e minha Mãe, de um arrastão acontecido logo ali, na Avenida Pasteur, quando voltávamos do Rio Sul. Perdemos algum dinheiro, bolsas, cartões e documentos, mas escapamos vivas, o que vale dizer que, a rigor, não nos aconteceu nada. Foi uma violência? Com certeza. Um susto? Podem apostar. Um azar? Pelo contrário: como tudo na vida, até um assalto pode ter seus lados bons, o principal deles sendo, obviamente, sair com vida, e sem um arranhão, de uma cena potencialmente letal.

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Há muitos e muitos anos, como habitante de cidade conflagrada, tinha essa dúvida comigo, de como reagiria a um assalto. Agora já sei, e me confesso aliviada. Meu maior medo era ter raiva, único sentimento que me faz, literalmente, perder o controle; mas o que senti foi um misto de espanto e de curiosidade, aliado ao medo indireto de que alguém – polícia, vítima ou assaltante – perdesse as estribeiras.

Felizmente, todos cumpriram o seu papel. A polícia não apareceu, as vítimas portaram-se com a humildade que convém às vítimas e os assaltantes, ainda que nervosos, portaram-se como assaltantes -- e não como assassinos. Como nenhuma dessas escolhas é de caso pensado, continuo me achando pessoa de grande sorte.

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Não sou a Madre Teresa de Calcutá nem o Dalai Lama, mas, com sinceridade, não tive, nem tenho, qualquer raiva dos bandidos. Não sei se pensaria assim se tivesse sido seqüestrada ou se a ação tivesse descambado para uma desgraça; mas sentir raiva de elementos em que não se percebe mais qualquer vestígio de humanidade equivale, a meu ver, a sentir raiva do proverbial sofá da anedota.

A indignação que senti mais tarde, quando enfim deitei a cabeça no travesseiro e tratei de pôr as idéias em ordem, foi, apenas, uma amplificação da raiva surda que sinto contra a degradação constante do meu país. O que me sufoca é o governo: este, o outro, o próximo, o federal, o municipal, o estadual -- toda a corja responsável pela completa ausência do estado na cidade e no país.

Esses canalhas, que a cada mês me roubam, só em impostos diretos, muito mais do que me roubaram os assaltantes da Avenida Pasteur, são os verdadeiros merecedores do meu ódio, do meu desejo mais profundo e visceral de que ardam, para sempre, no fogo dos infernos.

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Não sofro da patologia contemporânea de achar que todo bandido é vítima da sociedade. Não é. Pelo contrário. A sociedade, como um todo, trabalha muito duro para pagar aos seus funcionários, àqueles que deveriam cuidar para não houvesse crianças na rua, para que as escolas fossem não só suficientes como eficazes, para que toda a população tivesse assistência médica e iguais condições de planejamento familiar. ‘Aqueles, enfim, que, falhando todas as medidas preventivas, garantissem ao cidadão de bem o máximo de segurança, e ao malfeitor um mínimo de punição.

O diabo é que, olhando em torno, não vejo nenhuma “autoridade” imbuída de espírito público. Todos querem se eleger única e exclusivamente para garantir o seu, para gozar a perpétua sala vip do poder e para passear pelo mundo em tapetes vermelhos. São perversos cruzamentos de pavão com avestruz, desfilando lá fora a sua vaidade e enterrando, aqui, a cabeça na areia. Agora, aliás, inutilmente provida de wi-fi.

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Enquanto isso, garotas de 13 anos seguem tendo filhos na rua, que por sua vez terão filhos na rua aos 13 anos e assim sucessivamente, geração após geração, já que, entre outras coisas, a Igreja dá um piti sempre que qualquer político vagamente progressista ousa falar em planejamento familiar. Mas eu gostaria, honestamente, que a diocese me esclarecesse o destino que aguarda uma criança nascida nessas circunstâncias. Acaso a Igreja as recolhe? Alimenta? Veste? Orienta? Educa? Se mesmo crianças nascidas em famílias com recursos, até bem estruturadas emocionalmente, volta e meia viram bandidos, o que se pode esperar de crianças que crescem soltas na rua sem exemplo, sem escola e sem qualquer chance de aprender um ofício? O que esperar de crianças cujos heróis são traficantes, cuja alegria é cheirar cola e cujos símbolos de status são armas de uso exclusivo das forças armadas?

Tenho muita pena dessas crianças, assim como tenho pena dos adultos em que se transformam – isso, quando chegam a adultos. Seria hipócrita, porém, se não reconhecesse que mais pena ainda tenho das crianças e dos adultos que poderiam construir um país melhor se, por infelicidade, não tombassem mortos ao cruzar seus caminhos.

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O grande resumo da nossa, digamos, “experiência sócio-antropológica”, foi feito pela minha irmã, que conseguiu achar vários pontos positivos no assalto. O décimo e último foi: “Poder pensar -- sinceramente -- que bom que eu sou a vítima, e não o assaltante.”


(O Globo, Segundo Caderno, 31.7.1953)

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