3.7.08


House, um santo remédio

Fiquei viciada em House há dois meses quando, por acaso – e pela primeira vez -- assisti a um episódio. No dia seguinte comprei as três temporadas já disponíveis, assisti obsessivamente a episódio após episódio e, quando não havia mais nenhum, baixei a quarta temporada completa pela internet. Agora, que acabaram todos os episódios existentes, estou me sentindo aérea, desligada, com a sensação de que algo fundamental à minha existência está faltando ou, pior, me está sendo cruelmente sonegado. Em suma: estou em plena síndrome de abstinência.

Só penso em House, só falo sobre House. Li “A ciência médica de House”, estou indignada com a greve dos correios que vai atrasar a chegada de “House Unauthorized: Vasculitis, Clinic Duty, and Bad Bedside Manner”, que mandei vir pela Amazon, e percorro a internet como uma junkie, atrás de blogs e sites sobre a série. Minha irmã Laura e a Ju, minha sobrinha, estão passadas comigo. As duas assistem a todos os seriados, sabem de cor a ordem completa dos episódios das séries mais obscuras e dizem que não só me falaram de House assim que começou, como insistiram muito para que eu assistisse:

-- Você é mesmo uma pateta! – exclamou a Laura. – Já podia ter descoberto o House há anos!

Podia mesmo, se tivesse TV a cabo e, sobretudo, se me lembrasse de ligar a televisão de vez em quando como tal, e não apenas como player de DVDs. Não sendo este o caso, a recomendação das especialistas da casa entrou por um ouvido e saiu pelo outro.Tive uma segunda chance quando fui atropelada e o meu joelho foi para o espaço. Enquanto manquitolava de cá pra lá, tomando remédios contra a dor e usando a muleta para acender e apagar a luz, a Bia vivia me chamando de House. Isso para não falar no Dapieve que, sempre mais antenado do que eu, escreveu várias crônicas sobre o seriado. O problema é que recomendar programa de televisão para quem não assiste televisão é mais ou menos como recomendar churrascaria para vegetariano.

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Antes que alguém ache que estou fazendo o número da intelectual metida a besta que diz que não vê televisão mas assiste novela escondido, esclareço alguns pontos, o primeiro deles sendo que esse número nem existe mais. Chique, hoje, é gostar de tudo que seja pop, e nada é mais pop do que televisão. Numa encarnação passada, inclusive, cheguei a fazer crítica de televisão. Meu problema é uma simples questão matemática: as horas do dia não são divisíveis por tudo o que quero fazer. Além disso, detesto me viciar em programas com horário certo para começar, ou seja, qualquer coisa que passa na TV. Livros e DVDs, por outro lado, estão sempre à minha disposição, no horário que eu bem entender. Muito mais prático, não?

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House não foi o primeiro seriado que assisti em DVD. Vi duas temporadas de Sopranos e gostei, mas não o suficiente para correr atrás das outras. E fiquei fascinada com Deadwood, western sem mocinhos em que, apesar de tudo, a gente não consegue deixar de torcer por certos bandidos. Para mim, essa série, que teve três temporadas e que, aparentemente, não fez grande sucesso, é superior a House como dramaturgia. Ali foi criado todo um mundo, uma linguagem por vezes incompreensível mas sempre interessante, e um universo singularmente multifacetado. Ian MacShane, na pele do quase abominável mas não totalmente detestável Al Swearengen, será sempre um dos meus personagens inesquecíveis.

House, porém, tem carisma, e um mix imbatível de qualidades, a começar pelo protagonista. Hugh Laurie, comediante extraordinário e ser humano notoriamente depressivo, tem uma densidade atômica que não se compra na farmácia. House é politicamente incorreto, egoísta, infantil e irritante, mas ao mesmo tempo sexy e genial. Vale dizer, irresistível. Seus colegas de trabalho também são personagens bem construídos, representados por ótimos atores. E, de modo geral, a margem de acerto dos roteiristas é impressionante. Mesmo na quarta temporada, atrapalhada pela greve e por mudanças na fórmula emocionalmente mais enxuta das temporadas anteriores, há grandes momentos, ótimas falas e excelentes idéias.

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Ver a medicina reinventada pela televisão é um capítulo à parte. Em House, todos os doentes, tenham o que tiverem, de unha encravada a Síndrome de Behçet, sempre sofrerão convulsões ou paradas cardíacas, e farão ressonâncias magnéticas e punções lombares; a supra mencionada Behçet, aliás, é a primeira síndrome que vem à cabeça dos médicos, seguida de Guillian-Barré; entubar ou desentubar alguém é um procedimento simples e indolor, já que, uma vez desentubado, o paciente nem chega a tossir; enfermeiras e paramédicos em geral só servem para trocar a roupa de cama e limpar o vômito dos pacientes, já que a meia dúzia de médicos da equipe faz todo o resto, de exames de sangue e de DNA a neurocirurgias – muitas vezes, sem sequer trocar de roupa.

Claro que isso é frescura de quem, como eu, gosta de procurar cabelo em ovo. Ninguém espera medicina realista em ficção televisiva, embora House tenha inegáveis qualidades terapêuticas: não há tédio, por pior que seja, que resista a um bom episódio.


(O Globo, Segundo Caderno, 3.7.2008)

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