10.7.08


Calma: é só um jogo!

Por que transformar futebol em motivo de ódio?



Pouco antes de viajarmos para a Copa, há dois anos, o Calazans, que sabe das coisas, me fez uma advertência séria:

-- Agora é que você vai ver o que é carta de leitor!

Até aquele momento, eu vivia no ar rarefeito da tecnologia, onde há quem torça por uma marca ou outra, mas nunca se soube de pancadaria entre, digamos, usuários de Macs e de PCs. Nem na atmosfera civilizada aqui do Segundo Caderno, que só se altera na minha mailbox nas raras vezes em que abordo temas polêmicos. Mas aí já tiro, pela experiência, o tamanho das onças que cutuco: afinal, quem escreve o que quer tem que estar preparada para ler o que não quer.

Nos cadernos diários que produzimos sobre a Copa, contudo, entrei em contato com essa espécie particularmente feroz de leitor, mais conhecida na vida civil como “torcedor fanático”. Basta dizer que, até hoje, ainda encontro quem me ataque por ter feito da capivara aí ao lado personagem de crônica não-esportiva.

Dava até medo de abrir a caixa postal. Os emails não eram agressivos porque os leitores discordavam da minha opinião; discordavam da minha própria existência. Na melhor das hipóteses, da minha presença na Alemanha. Estar lá e escrever sobre morangos, curiosidades e modas, em vez de futebol, futebol e futebol, era desvio hediondo de caráter. Eu lia aquilo e pensava com as minhas chuteiras sobre o que estaria se passando na cabeça daquelas pessoas. Imaginavam, sinceramente, que eu teria algo a acrescentar ao que já estava sendo escrito pela nossa tarimbadíssima equipe? Não percebiam que o meu espaço era, justamente, a não-Copa? Não se davam conta de que a minha proposta para a capivara era só uma brincadeira, e não a base de uma nova seita?

-- Se você levar isso a sério vai passar a Copa inteira chorando, -- avisou o Calazans. – Não é pessoal. Quando você estiver muito aborrecida com a tua correspondência, pede para o Renato Maurício Prado te mostrar alguns dos emails que ele recebe.

O Renato, que não podia ser mais escolado no assunto e que, ainda por cima, adora provocar, recebia emails indescritíveis, cabeludíssimos. Se eu recebesse qualquer coisa minimamente parecida, ficaria catatônica para o resto da vida. Ele achava uma graça enorme. Era assim! Fiz um ligeiro esforço de adaptação (um ano e meio), entrei no espírito, e... pronto, passou. Quando acabou a missão, eu já estava imunizada contra pit-leitores.

* * *

Para não cometer grande injustiça, preciso dizer que a maioria das pessoas que me escreveu durante a Copa era gente fina. Por exemplo, quando escrevi sobre uma estranha gripe que não passava, os leitores deram o diagnóstico: não era gripe, era febre do feno. Eu estava tomando os remédios errados. Quando me queixei de queda de cabelo, as leitoras se solidarizaram comigo, e me salvaram com dicas úteis e com a explicação para o fenômeno: a água da Alemanha é terrível. E ainda há quem me escreva ou que, me encontrando por acaso em algum lugar, pergunte quando a capivara vai voltar.

Na verdade, ela nunca se aposentou. Tem feito algumas participações especiais no blog, em geral quando viajo. Da última vez, como se pode ver pela foto, viveu um tórrido caso de amor. Em Berlim e Paris, no less, que é roedora de fino trato. A historinha agradou, e acabei transferindo-a para uma página separada, em coracapi.blogspot.com, onde pode ser acompanhada em ordem cronológica e com trilha sonora.

* * *

Por que este mergulho num passado já remoto? Ora, porque, na sexta-feira, quando dei minhas impressões sobre a final da Copa Libertadores – o primeiro jogo que vi no Maracanã! – voltei a ser atacada por uma pequena matilha de pit-leitores, menos numerosos e menos ferozes do que os de 2006, mas igualmente cheios de raiva e de certezas absolutas.

O que mudou, para valer, foi a minha reação. Ou apatia. Cansei. Não tento mais descobrir o que vai pela cabeça dessa gente, e também não consigo mais achar graça de quem reage de maneira irracional diante de uma simples crônica, até auto-gozadora, sobre uma ida ao estádio. Trocando em miúdos: futebol é futebol, não é o fim do mundo, uma sentença de morte ou uma intimação da Receita Federal. É um jogo, é um negócio miliardário, é uma paixão, é tudo o que quiserem; só não pode ser um motivo a mais para ódio entre os habitantes desta cidade que, daqui a pouco, de maravilhosa só terá a vista. Da janela do avião; quando a gente parte.

É de reações trogloditas como odiar automaticamente quem veste uma camisa diferente (ou professa outra religião, ou tem outra cor de pele) que se fazem as grandes desgraças humanas. Estou sendo exagerada? Já não nos bastam os morros dominados por traficantes, os desmandos da PM, as balas perdidas (e as muito encontradas), as gangues de mauricinhos nas madrugadas, os assaltos em cada esquina, os mil medos que nos prendem em casa? Alguém ainda deve estimular ou ser estimulado a ser um torcedor doente?!

Como diz um querido amigo que gosta de esporte e, mais que isso, entende das coisas, “Todo cidadão tem o direito de torcer pelo Vasco na arquibancada do Flamengo.”

(O Globo, Segundo Caderno, 10.7.2008)

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