Uma capivara só não faz verão
Na semana passada, vários leitores tiveram a gentileza de escrever para me garantir que sim, há gente que lê jornal no dia de Natal. Agradeço de coração: foi uma surpresa que me deixou contente e animada para escrever a coluna de hoje, outra data capciosa para cronistas.
Afinal, é sempre complicado encarar as datas obrigatórias, tanto pessoalmente quanto por escrito. A crônica, no fundo, não passa de uma redação, como aquelas que a gente fazia no colégio — com a diferença que acaba publicada em jornal. Quando o tema é livre, a gente canta como o Zeca Pagodinho; quando é obrigatório, tudo se complica.
— Eu prefiro tema obrigatório, — disse o Xexéo, quando comentei o assunto com ele.
— Prefere?! Você gostaria de escrever sobre o Ano Novo?!
— Não, claro que não. Não dou a menor pelota para datas. Estou falando em temas auto-obrigatórios. Quando me imponho um tema, escrevo melhor do que quando deixo a crônica me levar.
— Ah, mas um tema auto-obrigatório, na minha cabeça, é um tema livre. Estou falando dos temas obrigatórios-obrigatórios, dos quais não há como fugir.
— Como não há? Você pode escrever sobre o que bem entender, ora.
— Não posso não. Fico pensando no mundo lá fora, totalmente antenado na data, e eu aqui, alheia...
* * *
A quantas coisas fiquei alheia aqui durante o ano? Fiquei alheia, por exemplo, a (quase) tudo o que aconteceu em Brasília — para não falar em tantos e tão variados destinos turísticos percorridos pelo presidente. Não escrever não significa, é claro, não sentir, não ter uma opinião. E, se eu fosse petista, estaria, a essa altura, profundamente desapontada. Como não sou, estou apenas pessimista.
Há algo errado demais com um governo supostamente humanitário e teoricamente preocupado com o lado mais fraco da corda quando presidentes de banco dizem que este “foi um ano bom para o sistema financeiro”. Caramba! Há quantos anos a gente ouve isso?! Não estava na hora de inverter a equação, fazendo com que o setor produtivo se queixe menos e o setor financeiro se queixe mais?!
* * *
Também fiquei alheia ao que está acontecendo no Rio. Aqui, confesso, o nojo me paralisa. Não consigo mais nem me indignar. Fico quieta, sem me mexer, de olhos fechados, como uma criança que vive um pesadelo, uma dor ou um sentimento ruim, torcendo para que tudo tenha desaparecido quando abra os olhos.
Assim passei o ano em relação a esse casal Garotinho, virando a cabeça, evitando o olhar, esperando que, por um passe de mágica, ambos tenham misteriosamente sumido no ar quando afinal eu me vire para ver. Pode ser uma infantilidade, uma forma escapista de lidar com a situação, mas foi a única que encontrei, como carioca apaixonada pela minha cidade, para não morrer envenenada de desgosto e amargura.
* * *
— Ano Novo... que bobagem! — exclamou o Xexéo. — Por que você não escreve sobre as capivaras? Diga aos leitores que, apesar da data, decidiu escrever sobre as capivaras, e pronto, qual é o problema?
Ah, as capivaras... Eu amo as capivaras. Para mim, sua presença foi, indiscutivelmente, um dos pontos altos do ano, uma felicidade linda e inesperada. Ambas apareceram na Lagoa, filhotinhas, no começo de 2003. Foram separadas pela perseguição que lhes moveu um contingente de bombeiros, que tentou, em vão, capturá-las para o zoológico. Hoje vivem afastadas, a fêmea perto do Vasco, o macho ali pelo Cantagalo, ignorantes, ao que se saiba, da existência uma da outra. Estão gordas e saudáveis, mas não podem estar felizes. Capivaras são animais que vivem em bando, em grupos de dez a quinze indivíduos; uma capivara só não faz verão. Nem capivarinhas.
No outro dia, uns palhaços andaram tentando caçar a fêmea. Foram gentilmente dissuadidos disso pelos bravos pescadores da colônia, que gostam das bichinhas e zelam pelo seu bem-estar, para alegria geral dos freqüentadores da Lagoa.
Um dos meus desejos mais ardentes para este 2004 recém-nascido é que as capivaras voltem a se encontrar. Ou que, por algum acaso inexplicável, outras capivaras venham dar à Lagoa, para lhes fazer companhia e aumentar o nosso encanto.
Fica aqui, portanto, o meu apelo a quem, porventura, tenha uma capivara sobrando em casa: faça uma boa ação e leve-a para a Lagoa! Se for macho, solte-a perto do Vasco; se for fêmea, no Parque do Cantagalo. Duas capivaras solitárias e incontáveis cariocas ficarão muito agradecidos.
* * *
A foto da coluna, feita há alguns dias em Copacabana, é uma espécie de exorcismo para a chuva. É sempre assim, vocês sabem: quando a gente tem que adiantar uma edição, como a de hoje, e publica uma foto de sol, é certo que vai chover no dia anterior.
Pois eu estou apostando no vice-versa.
(O Globo. Segundo Caderno, 1.1.2004)
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