Algumas histórias da selva urbana
Não sei se vocês leram a notícia: um desempregado pulou a cerca de ferro do Campo de Santana, e matou a pauladas um pavão branco que vivia lá. Um grupo de travestis viu a cena e caiu de socos e pontapés sobre o assassino, que, tentando fugir dos agressores, espetou o braço numa das setas da cerca e lá ficou preso até ser resgatado e levado pelos bombeiros.Seria cômico se não fosse trágico. O desempregado alegou fome, a desculpa padrão de quem é flagrado matando animais. Não tenho ilusões a respeito da extensão de nossa miséria urbana, mas o Centro do Rio, embora esteja a cada dia mais cheio de desabrigados famintos, não pode ser um desmundo onde a única forma de implantar o Fome Zero seja o pega-mata-e-come.
Quem acompanha com um mínimo de atenção a vida dos bichos da cidade sabe como é comum o exercício dessa espécie de crueldade humana; no próprio Campo de Santana aparecem, freqüentemente, gatos mortos ou revoltantemente mutilados. O que não é freqüente é a vigilância. E absolutamente extraordinária é a presença de um grupo de travestis justiceiro, disposto a vingar a morte de uma ave que só tem uma missão na vida — enfeitar a paisagem.
* * *
No domingo de madrugada, quando ia chegando em casa, o porteiro me contou, alvoroçado, que a capivara que mora aqui em frente havia feito um longo passeio pelo pequeno bosque da ciclovia, aproveitando a calma da noite. Normalmente, ela fica mais perto d’água, meio escondida pelo manguezal.
— Mas ela tem feito isso sempre? — perguntei.
— Não, não tem, não. Só vi ela fazer isso hoje. Aliás, é a primeira vez que vejo ela à noite. No outro dia saltei do ônibus e vim andando, eram umas duas da tarde, e ela estava lá. Até joguei uma pedra nela. Ela fez um barulho esquisito para mim e fugiu.
Por pouco não virei grupo de travestis.
— Você jogou uma pedra na capivara?! Mas por quê?!
— Eu não sabia o que era. Vi aquele bicho, taquei a pedra.
— Mas é um bicho manso, que não ataca ninguém! Por que jogar pedra num animal que está quieto no canto dele?!
— Ah, ela tava lá, né ? Agora sei que é a capivara, até li no jornal, mas eu não sabia.
O mais estranho é que esse porteiro é um excelente rapaz, gentil com os moradores e carinhoso com a gatinha vira-lata, funcionária do condomínio no departamento de roedores. Ele agiu como agem tantas pessoas a quem não se ensinou o respeito, caminho do amor, à natureza. Surgiu um focinho estranho no pedaço? Pau nele. O país precisa, urgentemente, de uma campanha que ensine às pessoas a ter respeito pelos animais.
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Mudando radicalmente de assunto: não deixem de ir ao Vivo Open Air, aquela mistura de cinema, show e comidinhas armada no Jockey! É, disparado, a melhor pedida do verão. Os shows são... bem, shows. Iguais aos que rolam por toda a parte. As comidinhas são... ora, comidinhas. Iguais às de qualquer quiosque. Mas aquela tela imensa, armada em frente às arquibancadas, no meio daquela paisagem, é simplesmente única. O filme nem importa muito; o barato é a experiência, o conjunto de sensações. O Cristo ao lado, a Lagoa em frente, as luzes da cidade, as estrelas...
Até a chuva, quando acontece, acaba sendo engraçada. O pessoal do festival corre a distribuir capinhas plásticas, os espectadores correm a se proteger sob as marquises e tudo vira uma festa. O ambiente, alegre, está muito bem organizado. Uma delícia.
* * *
Foi lá que encontrei a gatinha da foto, protagonista de uma linda história felina. Estava esperando pelos meus ingressos quando ela apareceu, miando: uma coisa pequena, magricela, irresistível. A Bia e eu nos apaixonamos à primeira vista, e passamos o filme preocupadas com o que seria dela.
Mal sabíamos que havia feito outra conquista. Quando o filme acabou, encontramos, por acaso, uma moça à procura da gatinha de olhos claros com quem brincara antes do início da sessão, e que decidira levar para casa.
— Bem que eu quis deixar ela no carro durante o filme... — lamentava-se. — Agora sumiu. Nossa, gostei tanto daquela gatinha!
A história não podia ficar assim. Como é que deixaríamos escapar aquele Happy End ? Saímos pelo clube em busca da bichinha. Imaginei que poderia estar no mesmo lugar onde a encontramos quando chegamos — e, dito e feito, lá estava ela.
A moça, Paula, que é uma simpatia, ficou radiante; a gatinha, que acertou a mega-sena felina, foi logo batizada de Paikea, em homenagem à personagem do filme; e a Bia e eu, de tão contentes, chegamos a achar uma gracinha o gambá que nos espiava de cima da cerca.
(O Globo, Segundo Caderno, 22.1.2004)
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