29.1.04











É tudo verdade

No espaço de um dia, cronista visita três galáxias
distantes -- todas igualmente brasileiras



Por trás da tela branca do computador que, por enquanto, é apenas um ponto de interrogação, há três fotos completamente diferentes me espiando. Uma é da bailarina que participou do desfile da Virzi na Fashion Rio, e me traz à lembrança as deslumbrantes criações da Marcela: cores e texturas inesperadas, misteriosas, com brilhos e detalhes luxuosos. Nada poderia ser mais exótico ou sofisticado.

Na segunda, exato oposto da primeira, os pés enlameados das crianças do Suape, em Pernambuco, cujos pais participavam de um protesto que fechou, durante uma hora, as estradas de acesso a Recife. Essa me lembra o tédio no carro parado, a chuva fina e, sobretudo, o cheiro acre da fumaça dos pneus incendiados no asfalto. Nela tudo é pobre e tosco.

A terceira é a minha visão do paraíso. Uma praia quase deserta, onde a cor do mar faz contraponto aos coqueiros e à areia lisa, e onde as nuvens de chuva à distância não chegam a ameaçar o dia perfeito. A memória, aqui, é da água morna, dos sabores da terra, do carinho dos amigos. A paisagem, uma ilha de cartão-postal, é a quintessência do sossego e da paz.

As três fotos foram feitas por mim, com a mesma máquina, em menos de 24 horas. São a prova concreta de que, para um cronista, ter assunto demais é tão complicado quanto não ter nenhum.

* * *

Tudo começou na quarta-feira passada, quando fui à Fashion Rio. Eu amo a Fashion Rio. Continuo o mesmo ET de sempre nos desfiles, lounges e corredores glamourosos do mundinho fashion, e ainda me restam perplexidades suficientes para muito assombro, mas já não me preocupo mais em coordenar os vários tons de preto do meu guarda-roupa, por exemplo, ou, sequer, em entender o que está acontecendo.

A idéia é encontrar os amigos, visitar os lounges, admirar a linda arquitetura do MAM e os jardins de Burle Marx, passar vários minutos em angustiada indecisão quanto à cor das indefectíveis sandálias personalizadas e, finalmente, curtir os desfiles como happenings, ou pequenos shows.

No meu único dia na Fashion Rio deste ano, fiquei comovida com a nostálgica trilha do desfile da Maria Bonita Extra, em piano e pingue-pongue; curti demais as incongruentes havaianas H. Stern, com suas humildes tiras de borracha recobertas de luxo e riqueza; e adorei o desfile/performance da Marcela Virzi, ainda que colegas com know-how da área tenham feito restrições à mistura de moda e teatro. É verdade que fiquei dividida, sem saber se olhava para as roupas ou para o trabalho de corpo da bailarina com máscara de Marilyn mas, por mim, tudo bem — tudo era divertido, exagerado, interessante demais.

* * *

A manhã seguinte me pegou em Pernambuco, com um grupo de amigos, a caminho da Lagoa Azul. Na altura do Suape, esbarramos num engarrafamento monumental. Desci do carro para ver do que se tratava e, lá na frente, encontrei a cena tantas vezes vista na televisão: estrada fechada com fogueira de pneus, palha de coqueiro e o que mais houvesse à mão. Gente humilde, indignada mas não violenta, exigindo um mínimo de atenção das autoridades.

— A senhora veja os pés dessas crianças. A lama não é daqui do chão, é de dentro de casa: o rio subiu, nós estamos com barro pela canela. Há muitos ratos, os meninos estão ficando doentes. A gente reclama mas ninguém faz nada.

Coitados, o que mais podem fazer além de fechar a estrada?! É a única chance que têm de tornar pública a sua aflição.

— Nós só vamos sair daqui quando a imprensa chegar. A imprensa está nos ignorando, vai ver já receberam o telefonema de alguma autoridade.

Observei que talvez fosse difícil à imprensa chegar com a estrada interrompida, mas o meu argumento não colou. Para aqueles pobres brasileiros abandonados, a imprensa está acima dessas trivialidades de cunho prático. Assim como a polícia, que, engarrafamento ou não, acabou aparecendo e dispersando os manifestantes.

* * *

Seguimos em frente. Os meninos da foto ficaram para trás, como ficaram os desfiles da Fashion Rio e, a essa altura, também a praia paradisíaca do fim de semana. Sentimentos, fotos, lembranças: disso se faz a vida. E, às vezes, também a crônica.


(O Globo, Segundo Caderno, 29.1.2004)

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