8.1.04





Reciprocidade é bom e a gente gosta, mas...


O ano de 2004 começou com uma ótima surpresa: a intempestiva decisão do juiz Julier Sebastião da Silva de mandar a Polícia Federal fichar todos os americanos que chegam ao país. Tá. Eu sei que a maioria dos que ficam na fila tem pouco ou nada a ver com a xenofobia paranóica do governo Bush — mas que me deu uma alegria perversa ver americanos sendo, uma vez na vida!, oficialmente chateados por autoridades brasileiras, lá isso deu.

Como todo mundo, sei que a medida tem mais a ver com retaliação do que com reciprocidade; que é uma tremenda infantilidade tirar retratos e digitais de velhinhas do Wisconsin; e que estamos, como tão bem escreveu o Luiz Garcia na terça-feira, agindo como uma capivara que ruge.

Mas a questão é que, como tanta gente, eu também já estava por aqui com a indiferença do nosso governo perante a arrogância e a truculência com que os agentes de imigração tratam, rotineiramente, os brasileiros. Ver uma autoridade do meu país tomar uma atitude em relação ao assunto — por destrambelhada que tenha sido — foi, sim, uma grande felicidade.

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Isto, no primeiro momento. Passada a onda de euforia patriótica, contudo, a gente pára para pensar. Vi na televisão os turistas sujando os dedos e sendo fotografados, e fiquei perturbada. Não é assim que se deve receber quem vem nos visitar! Fiquei com pena deles e com um certo constrangimento por nós, pobres capivaras tão mal equipadas. Que eles demonstrem total desprezo pelas diferenças culturais e sociopolíticas do planeta é problema deles; que a gente tente superá-los em ignorância é problema nosso.

Bem ou mal, é preciso reconhecer que eles têm razões de sobra para andarem histéricos. Se vêm ou não buscando mais sarna para se coçar são outros quinhentos.

Por outro lado, por mais compreensão e paciência que se tenha, é impossível aceitar, em paz, a grosseira hipocrisia de um sistema de segurança que só considera suspeitos os cidadãos de países do Terceiro Mundo.

Aí é que a coisa pega.

Ao exigir reciprocidade, algo perfeitamente legal e aceitável, o juiz agiu como bom brasileiro indignado. Nós, demais brasileiros indignados, aplaudimos seu gesto. Mas imagino que nem uma coisa nem outra teriam acontecido se, ao longo dos anos em que os Estados Unidos vêm espezinhando e deportando brasileiros, nosso governo tivesse se manifestado com suficiente energia.

É óbvio que os americanos dariam de ombros e continuariam agindo como sempre agiram; mas pelo menos nós, cidadãos peripatéticos, não nos sentiríamos tão desamparados. Espero estar errada, mas em nenhuma das inúmeras histórias de maus tratos infligidos a brasileiros no exterior me lembro de ter ouvido do Itamaraty mais do que expressões de irrelevante formalidade; não me recordo de qualquer chanceler protestando, de qualquer sinal de real indignação em Brasília.

Muito antes pelo contrário. Ao tirar obedientemente os sapatos nos aeroportos de três cidades americanas, em janeiro de 2002, o então ministro Celso Lafer deu o primeiro passo, descalço, para que, em janeiro de 2004, um juiz do Mato Grosso tomasse a originalíssima decisão de fazer política externa pelas próprias mãos.

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O diabo é que as relações entre os impérios e suas colônias são sempre muito complicadas. Os romanos pintaram, bordaram e foram muito felizes até o dia em Átila foi a Roma exigir reciprocidade.

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“Acupuntura urbana”, de Jaime Lerner, é um livrinho pequeno e despretensioso, pelo qual você provavelmente passará batido na livraria se não estiver atento às novidades. Meu conselho é: fique atento! O livro é uma jóia, inteligente, engraçado, comovente. Uma delícia de ler, sobretudo para quem vive intensamente a vida urbana.

A premissa básica é que, a exemplo das pessoas, as cidades também podem recuperar a saúde por meio de toques em pontos doentes. Assim que as áreas em torno desses pontos ganham energia, as cidades sentem que algo de bom aconteceu e tomam alento, desenvolvendo reações positivas em cadeia.

É um grande achado, daqueles capazes de mudar a nossa percepção das coisas: agora ando pelo Rio atenta a pontos de acupuntura, daqueles que deram certo — como os quiosques, que revitalizaram a Lagoa — aos que precisam de atenção urgente.

Usando essa idéia como fio condutor, Lerner passeia pelos lugares do seu coração, fazendo de “Acupuntura urbana” um curioso híbrido de livro de viagem, tratado de urbanismo e declaração de amor.

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Parece incrível, mas essa coluna faz um ano hoje! Está sendo bom para vocês também?

(O Globo, Segundo Caderno, 8.1.2004)

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