26.3.03



Um (possível) ponto positivo do ataque

Ao gerar a maior onda de antiamericanismo jamais vista, Bush pode ter liberado a cultura mundial


Poucas coisas perturbam tanto Jack Valenti, eterno presidente da MPAA (Motion Pictures Association of America, entidade que devota boa parte do seu tempo e energia a combater qualquer inovação tecnológica), quanto uma nova descoberta:

-- A crescente ameaça representada por essa nova tecnologia põe em perigo a vitalidade econômica e a segurança futura de toda a nossa indústria -- afirmou, em depoimento ao congresso americano. -- Para o produtor de cinema e o público americano, ela é equivalente ao estrangulador de Boston diante de uma mulher sozinha.

Corria o ano de 1982, e ele queria porque queria que o congresso banisse uma coisa terrível chamada videocassete, que permitia aos usuários gravarem programas e filmes direto da televisão. Felizmente os tempos eram outros, e os legisladores entenderam que o público seria prejudicado se os interesses da MPAA fossem atendidos.

Ironicamente, Hollywood também saiu ganhando com a sua derrota. Não fossem os videocassetes e toda a indústria de venda e aluguel de filmes que geraram, os estúdios estariam, hoje, numa situação assaz complicada.

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Tá, mas isso foi há mais de duas décadas. Por que tocar no assunto agora? Simples: porque, nos últimos anos, a MPAA e o indefectível Jack Valenti voltaram a atacar, dessa vez opondo-se à internet e aos formatos digitais que permitem a transmissão de músicas e vídeos pela rede. Graças ao poderoso lobby da indústria de entretenimento, os EUA aprovaram, em 1998, o DMCA (Digital MIllenium Copyright Act), que dispõe sobre direitos autorais no mundo digital. Inicialmente destinado a coibir a pirataria, o DMCA representou um gigantesco retrocesso legislativo: através dele, os direitos dos usários têm sido postos em xeque, e a pesquisa científica, a liberdade de expressão e a livre concorrência vêm sendo sistematicamente ameaçadas.

Ainda assim, Mr. Valenti não está contente. Quer mais - e, para isso, acaba de descobrir uma palavra mágica: terrorismo. Assim, a pirataria internacional estaria não apenas ameaçando a indústria, mas também financiando o terrorismo. O governo lá de cima, que não precisa de estímulo para ser truculento, já mandou avisar ao mundo que se cuide. Enquanto isso, a MPAA uniu-se à RIAA (Recording Industry Association of America - aquela, que matou o Napster) para convencer governos estrangeiros a adotarem legislação tão daninha quanto a sua. Não surpreendentemente, a união atende por "Coalisão da indústria do entretenimento pelo livre comércio", Entertainment Industry Coalition for Free Trade, ou seja: mais um daqueles free-alguma-coisa em que eles, para variar, têm todos os direitos e nós, todos os deveres.

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E aqui, enfim, eu chego onde queria. Desde que Bush & Co tomaram o poder e, sobretudo, desde que começaram o ataque ao Iraque, o mundo mudou muito - sobretudo em relação aos EUA, que se tornaram a nação mais detestada do planeta. Ser antiamericano passou a ser um trunfo político tão forte que até o senador José Sarney passou a ser antiamericano desde criancinha. Por complicada e eventualmente injusta que seja esta situação, ela não deixa de ter pelo menos um ponto positivo: daqui em diante, vai ser bem mais difícil, para qualquer parlamento da Terra, aprovar leis para agrado das megacorporações americanas. Paralelamente, contando com o apoio do público, será mais simples promover os vários sabores das muitas culturas regionais. Posso estar sendo excessivamente otimista - mas não seria curioso ver Jack Valenti e suas gangues de Hollywood como collateral damage do ataque ao Iraque?

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A delicada questão dos direitos autorais está na ordem do dia aqui no Rio: até amanhã, estão reunidos no Méridien alguns dos principais estudiosos do assunto, num seminário promovido pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Berkman Center da Universidade de Harvard. Aberto por Lawrence Lessig, ciber-jurista com status de popstar no mundo conectado, o primeiro dia do encontro terminou com John Perry Barlow -- de quem já falei aqui -- e Gilberto Gil conversando sobre música online. Para ficar de acordo com o programa, eu deveria dizer "debatendo", mas seria o verbo errado, já que Barlow e Gil, fãs um do outro, praticamente não têm divergências em relação ao assunto. É claro que, enquanto Barlow pôde se dar ao luxo de pregar o fim sumário de todos os intermediários entre o artista e seu público, Gil, como ministro, teve de ser mais cauteloso. Mas não se apertou: leu um manifesto do próprio Barlow a favor da livre circulação de música e de idéias, que traduziu - e interpretou - às mil maravilhas. Para bons entendedores, foi suficiente.

Tenho a impressão de que vamos ver coisas muito interessantes acontecendo na cultura brasileira.

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Será que a CNN realmente acredita que está conseguindo enganar alguém?

(O Globo, Segundo Caderno, 26.3.03)

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