17.3.03



A Cultura acorda. Ufa!

Confesso que, quando Lula indicou Gilberto Gil para o Ministério da Cultura, achei a escolha péssima. Para que pegar um artista excepcional como Gil e acorrentá-lo a um cargo burocrático que, em última instância, com suas verbas minúsculas, pode ser exercido por qualquer um — como foi — sem qualquer alteração perceptível da realidade?! Para mim, a contribuição de Gil à cultura brasileira seria sempre muito mais relevante no palco, até porque talento é dom, não é cargo e — ao contrário do MC — não é para qualquer um.

Bom, errei na mosca. Estou descobrindo que um ministério tem exatamente o tamanho do ministro que o ocupa. Assim, enquanto Ciência e Tecnologia (que é hoje o verdadeiro Ministério da Defesa, ao contrário do que supõe o jurássico PCdoB, que o recusou) literalmente sumiu — apesar da excelente estrutura deixada pelo ex-ministro Ronaldo Sardenberg — o Ministério da Cultura adquiriu uma dimensão inesperada. E, o que é mais interessante: começa, afinal, a se voltar para alguns dos temas mais palpitantes do setor.

Não querendo desmerecer a cerâmica do Vale do Jequitinhonha ou as figureiras de Taubaté, os principais desafios da cultura estão, no momento, em esferas bem mais complexas e delicadas — ainda que não necessariamente restritas à área específica de atuação da pasta.

Aí está a internet, com sua cáfila de problemas; aí estão os formatos de multimídia abertos, que as gravadoras e a indústria cinematográfica querem matar a qualquer custo; aí está a interminável questão dos direitos autorais num mundo em que a tecnologia evoluiu, e evolui, com velocidade incomparavelmente superior à da legislação.

Essas são questões importantes demais para serem deixadas à solta, ao alcance do lobby das mega-corporações americanas e/ou da primeira deputada despreparada disposta a legislar sobre o que não entende. São questões em aberto, intimamente ligadas à cultura, que têm que ser pensadas conjuntamente pela sociedade e pelo governo.

E — espanto! — o Brasil tem finalmente um ministro da cultura que se deu conta disso.

Eu, porém, só me dei conta disso quando Gil convidou John Perry Barlow para vir ao Brasil. É óbvio que um convite ao Barlow tinha mesmo que partir do MC — mas há tantos anos a cultura oficial ignora que há uma revolução tecnológica acontecendo que eu cheguei a me espantar: ué, o Gil vai trazer o Barlow?

Faz o maior sentido, é claro. Gil desde sempre esteve antenado com a internet e com a cultura hi-tech; chamou para assessorá-lo Hermano Vianna, uma das belas cabeças ciber-pensantes do país; e, na semana que vem, vai participar do I-Law, que tem tudo para ser um dos mais importantes seminários já realizados no Brasil sobre o futuro das idéias — para citar o seu participante mais conhecido, Lawrence Lessig (um dos ciber-heróis deste blog), “inventor” do direito de internet e autor, justamente, de “The future of ideas”, um livro fundamental para quem quiser saber a quantas anda a liberdade de expressão. Cultura com C maiúsculo é por aí, mesmo.

* * *

Organizado pela Escola de Direito da FGV e pelo Berkman Center for Internet & Society da Universidade de Harvard, este seminário vai reunir, além de Lessig e Barlow, feras como Jonathan Zittrain (do caso Micro$oft — banda boa, é lógico!), Charles Nesson (fundador do Berkman Center e valente defensor do direito de expressão na rede), Yochai Benker (estudioso dos problemas da exclusão digital) e William Fisher (especialista em propriedade intelectual, ultimamente às voltas com a regulamentação das rádios online, a respeito das quais prestou depoimentos para o congresso americano).

Definir um encontro como o I-Law como um simples debate sobre direito é desconhecer o que está em jogo. A discussão sobre o futuro dos direitos autorais, por exemplo, é cultura profunda e filosofia de alta densidade atômica. Há um mundo a ser redefinido e, a menos que a sociedade se organize como um todo, ele acabará nas mãos de meia dúzia de conglomerados de mídia.

Leia mais: O André Machado fez uma ótima entrevista com Ronaldo Lemos, o jovem coordenador de Direito e Tecnologia da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

Update: Acabo de receber o jornal impresso e, por coincidência, a capa do Segundo Caderno traz uma manchete diametralmente oposta ao título da minha coluna: Pânico na Cultura, assinada pelo Arnaldo Bloch e pelo Jaime Biaggio. O povo da área está, parece, bem apreensivo em relação à escassez de verbas.

(O GLOBO, Info etc., 17.3.03)

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