A marcha da insensatez
Pronto: cá estamos nós, mais uma vez reféns da nossa própria estupidez, imperfeitos que somos, incapazes de tirar da História as lições mais elementares; cá estamos nós, mais uma vez empenhados em nos matarmos uns aos outros e em cultivar o ódio como se fosse uma flor rara, porque, em última instância, é ele que justifica a barbárie.Digo “nós”, naturalmente, como coletivo planetário, como bípedes inviáveis que somos, incapazes de enxergar um palmo diante do nariz; mas é claro que quero dizer “eles”, pondo nisso uma indisfarçável carga de ressentimento. Provando, portanto, que pertencemos de fato à mesma espécie.
Dick Cheney, Condoleeza Rice, John Ashcroft, Colin Powell, Saddam Hussein, Donald Rumsfeld — todos são seres humanos, como qualquer um de nós. Até George W. Bush, dizem, é humano. Como Michael Jackson, ou Fernandinho Beira-Mar.
Deprimente? Bota deprimente nisso! Sei que a esses exemplos se poderiam facilmente contrapor outros tantos do que a espécie tem de melhor: Bach nos redimiu, e ainda vai redimir, por muitos e muitos séculos, como Shakespeare, Giotto ou Fernando Pessoa. Mas, neste específico momento do tempo registrado, só encontro motivos para ter uma profunda e inerradicável vergonha de ser humana.
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Em apenas dois anos, como já observaram tantos comentaristas internacionais, George Bush e o cartel que representa conseguiram transformar a gigantesca onda de simpatia e solidariedade que se formou em torno dos EUA logo após o atentado numa tsunami de antiamericanismo de proporções nunca vistas.
Conseguiram também transformar uma imprensa antes forte, independente e admirável numa massa tão amorfa e subserviente que Art Spiegelman, o melhor desenhista da “The New Yorker”, ainda uma das melhores revistas americanas, não agüentou o clima e pediu o boné, depois de dez anos de magníficos serviços prestados. Diretamente, aliás, à própria mulher, a diretora de arte Françoise Moulay — que permanece a bordo como, diz, “uma espécie de refém”.
Resultado? O americano médio está, hoje, mais alienado e desvinculado do resto do mundo do que jamais esteve. Ele não tem idéia de como o resto da Humanidade vê o seu país e os seus governantes e não se sente mais seguro em lugar algum do planeta — exceto, talvez, no porão de casa. Onde, com seu consentimento, é vigiado dia e noite pelo governo, enquanto maldiz a Rússia, muda o nome das batatinhas e joga fora o champanhe que ainda poderia lhe trazer um pouco de alegria.
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É uma ironia do acaso que o animal que representa seu partido seja um elefante.
(O Globo, Segundo Caderno, 20.3.03)
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