11.3.03



Pesadelo no Vale

Um dos leitores do Info etc. recebeu uma carta de um amigo que mora en San Jose, Califórnia, coração do Vale do Silício. A coisa não está nada boa para aqueles lados. O retrato que o amigo do Wang Yu traça é triste — e, pelo que sei, muito verdadeiro:

“Aqui vai um instantâneo do vale mais triste dos EUA. Dizem que o índice de desemprego está em 8%... mas anda mais próximo a 20%, se o número de pais desempregados nas reuniões da escola servir de indicativo. A taxa de imóveis comerciais desocupados anda em torno dos 60% a 70%. Muitos desses imóveis ainda têm contratos vigentes, de modo que os números oficiais falam em “apenas” 30% de desocupação.

Há uma rua em Milpitas que liga a estrada 237 com a Montague Expressway, chamada McCarthy Boulevard. Na verdade, é o Boulevard das Startups Quebradas. Tem cerca de 30 prédios construídos ao longo de um percurso de uns quatro quilômetros, dos quais todos, com exceção de cinco, estão vazios...

Acho que todos os lucros reportados na área são uma invenção, já que ninguém precisa mais de nada; as empresas estão gastando o que ainda sobra do que receberam dos investidores, e fazendo de conta que tudo vai bem. Há material estocado nos almoxarifados para durar anos.

As pessoas tentam parecer ocupadas no trabalho, mas a maior parte dos empregados hi-tech daria conta do que tem a fazer em uma ou duas horas de serviço por dia.

Eu sei: passei por três empresas diferentes nos últimos três anos.

Nos próximos anos, as últimas companhias que ainda conseguiram levantar dinheiro entre 1998 e 2000 vão chegar ao fim das suas reservas, fechar as portas e acrescentar mais alguns milhares de indivíduos às hordas de desempregados. Uma manchete do Mercury News dizia, no outro domingo, que a economia vai se recuperar em... 2011! Sinistro!”

Para mim, o pior não é que as coisas estejam assim; é que ninguém tenha previsto que, como estavam, não podia dar certo. Sempre fiquei chocada com o desperdício que via durante a bolha: empresas recém-nascidas mudando-se para edifícios de luxo, equipamentos praticamente novos postos no lixo apenas porque havia um novo modelo na praça, casas e carros de preços estratosféricos. Algumas vezes perguntei a amigos que estavam nessa se não era melhor uma empresa se consolidar primeiro e começar a ganhar dinheiro para, depois, quem sabe, se mudar para a área mais rica da cidade, mas invariavelmente ouvia a mesma resposta: a aparência fazia parte do jogo. Como eles estavam (e em alguns casos ainda estão) ricos e eu não, só me restava meter a viola no saco — muito assombrada com aquilo tudo.

Houve uma época, por exemplo, em que, em vez das canetinhas e camisetas de costume, o pessoal distribuía coisas inteiramente extravagantes na Comdex, de discos voadores de brinquedo a mini ventiladores de pilha: coisas relativamente caras, de que ninguém precisava e cujo destino óbvio era a lata de lixo, num futuro mais ou menos próximo — grátis, aos milhares, para quem quisesse. As embalagens de alguns press-kits, então, me afligiam demais: caixas extravagantes, lindas... que não podiam ser recicladas para nada. Isso, aliás, me deixa perturbada até hoje: o que é que justifica tanto desperdício?

O Wang, que me mandou a carta do amigo, pergunta o que acho disso, querendo saber se, como consumidores, seremos prejudicados pela atual situação do Vale. Sinceramente, não sei. É possível que a turma da bolha precisasse mesmo deste choque de realidade para virar gente; é quase certo que as grandes extravagâncias sejam coisa do passado. Mas para as boas idéias e para os conceitos verdadeiramente revolucionários, acho que sempre haverá futuro.

(O Globo, Info etc., 10.3.2003)

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