13.3.03



John Perry Barlow:
um ianque contra a guerra

No dia 11 de setembro de 2001, quando a BBC ainda estava se dando ao trabalho de informar aos telespectadores que as cenas do World Trade Center não eram trailer de filme, um e-mail de John Perry Barlow bateu nas caixas de correio eletrônico dos seus 897 amigos mais chegados. Barlow — um dos maiores ativistas do ciberespaço, responsável, inclusive, pelo uso da palavra “ciberespaço” para designar... bem, o ciberespaço — previa, já naquele momento, o que, em pouco tempo, se provaria realidade: o ataque dos terroristas dava à linha dura americana a desculpa que estava querendo, há tempos, para controlar a mídia do país e a vida dos seus cidadãos.

“Como muitos de vocês sabem, acredito que, ao longo dos últimos 30 anos, os Estados Unidos vêm se tornando, de forma gradual, sutil e invisível à maioria de nós, um estado policial”, escreveu então. “Os acontecimentos desta manhã são, de modo geral, equivalentes ao incêndio do Reichstag, que deu, aos nazistas, a desculpa social para se apossarem da Alemanha. Não estou dizendo que, como os nazistas, as forças autoritárias da América tenham participado diretamente desta tragédia inconcebível (...). No entanto, nada poderia servir melhor àqueles que acham que a “segurança” americana é mais importante do que a liberdade americana.”



O barata-voa só não foi maior porque, convenhamos, o que voou de barata naquele momento não foi brincadeira; ainda assim, Barlow foi apedrejado com igual vigor pela direita e pela esquerda. Quem manda pensar com a própria cabeça? Porque é nisso, afinal, que ele se especializa — e é por isso que é tão difícil encontrar um rótulo para defini-lo.

Filho e neto de senadores republicanos, republicano ele mesmo até o dia em que Bush tomou o poder, Barlow nasceu numa fazenda no interior do Wyoming (ô, pleonasmo, esse!), formou-se em teologia, criou gado até meados dos anos 80, foi letrista do Grateful Dead, ajudou a deslanchar a “Wired” (revista que marcou época na cultura com tomada) e foi um dos fundadores da Electronic Frontier Foundation, organização que defende com galhardia os direitos civis no ciberespaço.

Viajante incansável e zeloso evangelista da internet, não raro junta essas duas vocações em alguma aventura improvável. Uma vez, por exemplo, foi ao Mali, na África, só para instalar o primeiro provedor de internet da região — e isso numa época em que a metade dos EUA ainda não havia sequer ouvido a palavra internet. Quando perguntei o porquê daquela mão-de-obra, a explicação foi simples:

— Porque quero poder chegar para as pessoas e dizer: “Como é que vocês ainda não têm internet? Já existe internet até em Timbuktu!”



Desde o começo de março, Barlow está no Brasil. Foi convidado por Gilberto Gil para ver o carnaval e um pouco do país junto com Jack Lang, o ex-ministro da cultura francês; quando a agenda oficial acabou, decidiu esticar por conta própria. Neste momento, está na Praia do Forte, que considera a melhor imitação de paraíso que já viu na vida.

Está impressionado e feliz com o país (que visitou pela primeira vez em 1998), com a música, com a energia que sente em toda a parte e, sobretudo, com a cordialidade das pessoas, artigo cada vez mais raro nos EUA. John Perry sinceramente acha a alegria uma arma fundamental para a sobrevivência da espécie, e luta como pode contra o clima de medo e pessimismo vendido pela mídia americana — que, na sua opinião, criou uma espécie de hipnose coletiva movida a futilidades.

— O que eu acho que está acontecendo na América é que estamos nos fartando de pão e circo — diz. — Só temos reality shows , açúcar e televisão, e muitos de nós caímos num torpor induzido por essa obesidade social. As coisas que aconteceram foram demais para muita gente; agora, está todo mundo fazendo de conta que está dormindo. Acontece que, quando as pessoas fazem de conta que estão dormindo, é impossível acordá-las. Você entende? Não há como chamar a sua atenção, porque elas estão fazendo de conta que não têm atenção alguma... É um círculo vicioso. A mídia simplesmente torna coletivo o sonho dos que fazem de conta que estão dormindo. Ela não pensa em ninguém, especificamente; apenas expressa o que se tornou lugar-comum — por estar na mídia — e reforça isso. Faz o que sempre fez, ou seja, tenta segurar um público desatento com uma dieta crescente de medo, sexualidade e violência.



Se isso nos parece familiar, é porque é familiar mesmo. Para Barlow, há uma tendência mundial de se aceitar sem discutir o que vem da televisão — que passou a ser a ferramenta universal de interpretação dos fatos.

— Uma das minhas principais preocupações neste momento é a possibilidade de um totalitarismo privado — que, aliás, acho que já está acontecendo. A massa está cada vez mais impermeável à realidade, e a internet não está conseguindo contrabalançar isso. Há um bom nível de dissidência na rede, mas ele não chega a fazer a menor diferença. Se fizesse, a esta altura eu já estava preso.


(O GLOBO, Segundo Caderno, 13.3.03)

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