5.3.03



Deus e as gangues:
viva o povo brasileiro!


Certos filmes não são comparáveis,
mas a gente compara mesmo assim



No domingo de carnaval fui assistir novamente a “Deus é brasileiro”. Desta vez, já escolada pela primeira experiência, fiquei repetindo com os meus botões imaginários: “Não vou chorar, não vou chorar, não vou chorar” Adiantou? Que nada! No final, lá estava eu pagando mico no cinema, de novo comovida com aquela associação de palavras, música e imagens -- e de novo pensando em que ponto da minha cabeça ou do meu coração bateu o filme, de onde vem ou onde está essa química que fez com que eu e tantos espectadores tenhamos deixado o cinema em estado de graça, enquanto outros, no mesmo dia e horário, nas mesmas condições climáticas e geográficas, tenham saído reclamando disso ou daquilo, obviamente intocados pelo que haviam visto. Fiquei com vontade de pegar os insatisfeitos todos, um por um, e levar para tomar um café comigo no Clipper ali do lado, só para ver se descobria como é possível uma tal diferença de sintonia entre as gentes. Assim, tipo... um estudo antropológico, sabem como é? Então.

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Acontece que, na semana passada, vi “Gangues de Nova York”, que metade da humanidade acha um filme extraordinário -- e detestei! Achei quase tudo ridículo, a começar pelo começo, ou seja, duas turmas de gangsteres bem-comportadinhos esperando o fim do falatório infantil dos seus chefes para -- só então, e obedecendo à Nobre Arte de Eliminar a Concorrência! -- caírem de pau uns sobre os outros. Para mim, nenhum personagem conseguiu, em momento algum, ser mais do que uma caricatura tosca; odiei o roteiro, que me pareceu um amontoado de lugares comuns salpicado com umas tiradinhas anti-Bush muito primárias; e me decepcionei demais com o trabalho dos atores, sobretudo Daniel Day-Lewis, de quem esperava bem mais do que uma imitação de Robert De Niro.

Tudo isso, paradoxalmente, com uma cenografia interessante, uma trilha sonora espetacular e uma direção maravilhosa. Se Scorsese ganhar o Oscar de melhor diretor não se estará cometendo nenhuma injustiça, pelo contrário. É impressionante que alguém consiga pôr aquilo tudo de pé e movimentar, de forma tão fluente, tantas engrenagens. Mas quando o filme acaba e rolam os créditos, a sensação de vazio é acachapante. O que quer dizer toda aquela confusão? O que é que fica com a gente, além da sensação de que as últimas três horas poderiam ter sido mais bem aproveitadas? Ali há apenas uma história contada por um ótimo diretor, cheia de som e fúria, significando nada. Ou, em outras palavras do mesmo autor, muito barulho por nada.

Na verdade, “Gangues” é um exemplo mal sucedido de um gênero que cada vez me irrita mais, mesmo quando dá certo: a super-produção hollywoodiana cheia de atores, extras, efeitos especiais, lutas, o diabo a quatro. Não agüento mais nem aquele vidro cenográfico que sempre se estilhaça de forma tão espetacular e ruidosa: parece condição sine qua non do cinema americano a exigência de que, em cada filme, haja pelo menos uma janela ou vidraça quebrada violentamente.

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No dia seguinte eu estava de novo no cinema, vendo “Deus é brasileiro” pela primeira vez. Obviamente, é impossível comparar esses dois filmes, que são animais tão distintos quanto um cão e um gato. Ao contrário de “Gangues”, o filme de Cacá Diegues é simples e “pequeno”, um road movie sem uma fração da complexa cinematografia que envolve o Scorsese. Mas o roteiro é uma delícia, com ótimos personagens e excelentes atores. Quando a gente sai do cinema, o filme vem junto, no coração -- trazendo, de quebra, uma das cenas finais mais bonitas de todos os tempos.

O mundo é mesmo vasto, variado e misterioso. Como é que alguém pode não gostar disso? Como é que alguém pode não gostar de gatos?

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Volta ao palco, esta semana, “Novas diretrizes em tempos de paz”, peça de Bosco Brasil que lotou uma temporada no Laura Alvim, no ano passado e revelou, ao Rio, a existência deste extraordinário autor, até então “escondido” em São Paulo. Para mim, além de ser o melhor espetáculo que vi em 2002, “Novas diretrizes” teve um apelo sentimental especialíssimo: é que para criar Clausewitz, o imigrante cujo destino está nas mãos de um ex-torturador, Bosco inspirou-se em Ziembinski e no meu pai, Paulo Rónai.

Como Ziembinski, Clausewitz é ator e vem da Polônia; como papai, aprendeu português antes de chegar aqui. Quando explica ao inspetor Segismundo (Tony Ramos, perfeito) porque fala português e o que pensa da língua, Clausewitz usa as palavras que papai escreveu em “Como aprendi o português e outras aventuras”, que tantas vezes ouvi ao longo da vida.

Dan Stulbach faz este personagem tão bem que chegou a me surpreender com as semelhanças entre ele e papai – semelhanças que, a rigor, nem existem, exceto pelas mãos expressivas, por um certo jeito de bondade e delicadeza e por algumas inflexões no sotaque observadas pela Bia, minha filha -- mas que eu não saberia reconhecer. Na vida real, nunca reparei neste sotaque, que o teatro, afinal, me trouxe de volta. A arte tem dessas coisas.

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Todo poder a Yvonne Kassu!

(O Globo, Segundo Caderno, 6.3.03)

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