Na época da Bolha, que aconteceu em outra encarnação, entre os anos 80 e 90, eu era feliz e sabia. Empresas de tecnologia brotavam como cogumelos em dia de chuva, regadas por uma quantidade de dinheiro nunca vista, e todas queriam mostrar suas instalações e produtos, e apresentar seus executivos e cientistas. O importante era fazer barulho, mostrar que existiam e que estavam cheias de gás.
Naqueles tempos pré-internet, a única forma de fazer isso era levando a imprensa até lá, onde quer que “lá” fosse. Não havia jornalista de informática (sim, assim chamava-se a tecnologia naqueles tempos) que não viajasse uma ou duas vezes por mês. Saia-se daqui numa terça ou quarta, trabalhava-se, voltava-se na sexta. Para quem detestava viajar, era um inferno; para quem gostava, era ótimo. Os mais aventureiros chegavam, de vez em quando, a emendar uma viagem que terminava numa que começava.
Graças a essa roda-viva, estive nas fábricas e laboratórios mais famosos, conheci nomes que hoje correspondem a lendas, mas que, na época, pertenciam a mortais comuns, e visitei uma quantidade de cidades exóticas, algumas até mais de uma vez. Poughkeepsie, Rochester e Mountain View, por exemplo, faziam parte do circuito básico da informática, e me deixavam com muita inveja do povo da moda, que ia a desfiles em Milão e Paris. Os momentos mais emocionantes da indústria aconteciam em Las Vegas, Atlanta ou Orlando; eu só pensava na turma do cinema, que fazia festivais em Cannes, Veneza e Berlin.
De qualquer forma, essa quantidade de viagens tinha um efeito colateral do qual nunca vi ninguém se queixar: milhas, muitas milhas. Com as quais, afinal, a gente sempre podia viajar mais um pouco.
Eu aproveitava as minhas para fazer upgrade e levar vida de rica nos aviões, e para esticar na ponta das viagens que terminavam na sexta-feira. Em vez de voltar para o Brasil, ia para o Caribe, passava o sábado mergulhando e voltava para casa domingo, feliz como uma baronesa de opereta.
* * *
Pois foi assim que, numa sexta-feira à tarde, embarquei em Boston, rumo a Miami; de lá eu ia para Saint Martin, encontrar a minha turma de mergulho na Scuba Fun Caraïbes. Logo depois de mim embarcou um cavalheiro extremamente bem-vestido que, pelo visto, conhecia o avião inteiro, a começar pelo piloto. Enquanto ele cumprimentava gente a torto e a direito, perguntei ao passageiro a meu lado quem era ele.-- Esse é o governador de Massachusets, -- disse o passageiro que, na seqüência, se levantou, cumprimentou o governador e entabulou com ele uma conversa que durou até o momento em que o embarque foi dado por terminado.
O passageiro e eu trocamos mais algumas palavras, e depois nos dedicamos, cada qual, a seus afazeres de bordo. Eu tinha inúmeras anotações para arrumar, ele pilhas de correspondência para pôr em ordem. Pilhas mesmo: era tanta papelada que, a certa altura, algumas cartas escorregaram do braço da poltrona e caíram no meu colo. Estavam endereçadas a uma atriz norueguesa.
-- Você é agente dela? – perguntei, enquanto as devolvia.
-- Não, -- disse ele. – Sou ex-marido.
-- Puxa. Como é que alguém consegue se tornar ex-marido de uma mulher maravilhosa como aquela?
-- Sim, ela é mesmo extraordinária, mas viver a dois nunca é fácil, -- disse o ex-marido, caindo naquela intimidade instantânea que a gente às vezes desenvolve com estranhos quando está em viagem. – Ela é perfeccionista ao extremo e exige tanto dos outros quanto de si mesma; mas, infelizmente, nem todo mundo é ela, não é? Ela acorda todo santo dia antes das seis da manhã, sempre no maior bom humor – você sabe lá o que é isso?
Por acaso eu sabia, sim. Na verdade, os problemas que ele enfrentava eram iguaizinhos aos meus. Passamos o vôo trocando confidências. Ele estava indo para Key West para pegar o barco e passar o fim-de-semana velejando sem rumo pelo Caribe. Quando soube que eu estava indo mergulhar, perguntou aonde eu ia, e em que hotel ficaria hospedada. Perguntou também se eu ficaria aborrecida se viesse me visitar.
-- Não, imagina, pelo contrário, -- respondi. – Estou indo para Anguilla, vou ficar no Cap Juluca.
-- Ah, ótima escolha, conheço bem esse hotel! – exclamou ele, contente.
Quando o avião pousou nos despedimos, e saí correndo para pegar a conexão. No avião para Saint Martin, senti uma pontinha de remorso por ter dispensado uma aventura tão romântica e, sobretudo, por ter mandado um senhor tão simpático para a ilha errada. Depois, pensando melhor, me dei conta de que não existem ilhas erradas para milionários que velejam sem destino pelo Caribe, e fiquei mais tranqüila.
Mas o mais estranho dessa história toda é que a única coisa que me lembro a respeito do visual do ex-marido é que ele calçava os sapatos mais bonitos que já vi no pé de qualquer homem.
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Dica muito rapidinha de livro: “Juventude”, de J. M. Coatzee, o extraordinário escritor sul-africano. O livrinho (tem apenas 184 páginas; a edição é da Companhia das Letras) é um romance de formação em que nada realmente acontece, mas em que tudo é novo, rápido e surpreendente. Uma jóia.(O Globo, Segundo Caderno, 8.7.2010)
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