15.7.10

Dois filmes



Não cheguei a ver “Sex and the city” na televisão. Quando o filme saiu, achei que seria uma boa oportunidade para tentar entender o porquê do auê em torno da série. Mas aí aconteceu uma coisa, e logo aconteceu outra, e um dia não tive tempo e no outro me atrasei e assim sucessivamente até que o filme saiu de cartaz. Logo em seguida o DVD chegou às lojas, mas com um preço ridículo, e deixei para lá. Um tempo depois, passando por uma liquidação, encontrei-o a um preço bom, comprei e fiquei contente porque, afinal, descobriria tudo. Mas aí vocês sabem como é: apareceu um filme mais importante, depois chegou uma leva de indianos imperdíveis, na sequência recebi uma novela coreana em 40 capítulos, sem falar que muitos e muitos livros interessantes foram publicados, e ou bem a gente lê ou bem vê DVD, de modo que lá continuou ele num canto, esperando a vez, que só chegou sábado passado. Com isso fui, provavelmente, a última pessoa do mundo a ver “Sex and the city”, parte um.
Odiei.

Eu sei que todo mundo já viu – mas, tirando o fato de que ninguém sabe representar no filme, o que são aquelas mulheres para lá dos quarenta se portando feito clichês de adolescentes?! O que são aqueles homens que significam menos do que bolsas de grife?!
O que é aquele senso de humor doentio?!

Uma histérica joga fora uma relação de anos porque o namorado ficou assustado na hora de casar (reação plenamente justificável, considerando-se a noiva), e viaja com as amigas para o México para curtir a fossa; não acha graça em nada, mas quando outra histérica faz nas calças porque bebeu um gole de água local, cai na gargalhada – porque, como disse uma terceira histérica, “quando algo for realmente engraçado você vai rir”... hel-lo? Então é este o tão decantado humor de “Sex and the city”?! Piadinha com cocô?! Mais patético, impossível.

Impossível? Não, nada é impossível neste filme. Mais para a frente uma quarta histérica, que só pensa em sexo, espera pelo namorado deitada em cima da mesa, pelada, com o corpo coberto de pedaços de sushi. É para ser sexy? Ou pura e simplesmente asqueroso?

Está de bom tamanho? Não, não, tem mais: essa mesma histérica compra um cachorro minúsculo que só pensa em sexo (oh, não diga!) e que agarra, desesperado, qualquer almofada ou bolsa que se apresente... e todo mundo acha isso tão engraçado quanto a diarréia mexicana. Quanta sofisticação, quanta maturidade.

Socorro!!!

* * *

Liguei para a Bia:

-- Estou vendo “Sex and the city”. É a pior coisa que já vi na vida.

-- Ah, dizem que este segundo filme é mesmo um lixo! O primeiro era menos pior.

-- Ahn?! Menos pior?! Mas eu estou vendo o primeiro!

* * *

O meu problema com “The sex and the city” não é que seja a porcaria inominável que é; é que, sendo tão vulgar e primitivo, tenha feito tanto sucesso. Que espécie de mundo se diverte com essa exposição acintosa de preconceitos e de boçalidade? Não gosto nem de pensar.

* * *

No dia seguinte, ainda abalada pela experiência, e convencida de que o cinema e a cultura americanos estão realmente decadentes, resolvi aproveitar o final da Copa para pegar uma sessão vazia e descomplicada. Fui assistir “Toy Story 3” – que mudou o meu estado de espírito de forma radical.

Não se iludam pensando que este é um filme para crianças só porque foi feito em computação gráfica; como no resto da trilogia, sobretudo na segunda parte, que é um mergulho dramático em graves problemas metafísicos, os brinquedos e os perigos que eles enfrentam são metáforas para as questões que nos acompanham a vida inteira – solidão, abandono, envelhecimento, morte.

Andy cresceu, vai para a universidade e não tem mais uso para os brinquedos. O que será deles? Durante a arrumação do quarto, que será herdado pela irmã pequena, a mãe aponta seus três possíveis destinos: eles podem ir para o sótão, para o lixo ou para uma creche que sempre precisa de brinquedos novos. Andy decide que irão para o sótão, mas, por uma série de equívocos, os coitados quase vão parar no lixo, de onde escapam rumo à creche.

A trama se adensa. O que parecia ser um paraíso revela-se uma prisão sufocante, com direito a guardas sádicos e criaturas de aspecto ameaçador; há um bebê semi-detonado, por exemplo, que é mais assustador do que qualquer concierge de campo de prisioneiros. A questão inicial – para onde vão os brinquedos – passa a ser secundária diante do novo drama: como fugir do horror.

Há ação de sobra para manter crianças e adultos entretidos, mas desconfio que os adultos aproveitam muito melhor as sutilezas de enredo, até porque os adultos, ao contrário das crianças, sabem perfeitamente que os brinquedos não são para sempre, a infância não é para sempre, nada é para sempre.

* * *

Como conciliar as partes de um mundo em que as crianças se formam com os filmes magníficos da Pixar, e passam a assistir “Sex and the city” quando crescem? Minha esperança é que as partes sejam mesmo irreconciliáveis, e que o nível de exigência das futuras platéias de filmes para gente grande enfim cresça e apareça.


(O Globo, Segundo Caderno, 15.7.2010)

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