2.1.08


Keaton: o último susto de 2007

Como um joelho quebrado pode afetar um ritual de muitos e muitos Réveillons


São seis horas da tarde do dia primeiro de janeiro de 2008, faz uma tarde linda lá fora e estou sentada ao comprido no sofá, saco de gelo no joelho e computador no colo, quebrando – já! -- duas resoluções muito sérias de Ano Novo: administrar melhor o meu tempo e escrever a crônica com pelo menos dois dias de antecedência, ou seja, tê-la pronta e revisada na segunda-feira, ao mais tardar, já que o Segundo Caderno de quinta fecha na quarta de manhã. Duas resoluções de Ano Novo quebradas antes das primeiras 24 horas do ano em questão não são um bom augúrio para as demais, as quase universais emagrecer, botar as finanças em dia, fazer exercício.

Também, quem manda acreditar em Ano Novo? Todo mundo sabe: não há Ano Novo, assim com maiúsculas e jeito de vida que se renova. Há apenas uma sucessão de dias interrompidos por um feriado muito animado, e um novo número que aparece nas agendas do Outlook, no celular e nas folhinhas dos calendários. Em suma, apenas um novo ano, em que tudo continua como dantes. Ou não. Mas aí é outra história, que não tem nada a ver com o Réveillon.

* * *

O caso é que, para pessoas como eu, que vivem se prometendo começar vida nova a partir de segunda, um ano novinho em folha é uma Data Magna, um Marco Existencial, uma segunda-feira amplificada. E, ainda que se tenha toda a experiência do mundo, a esperança sempre ganha a parada, agarrada a manias e superstições esquisitas. Para mim, como para tanta gente por aí, passar os primeiros momentos da virada em contato com a água do mar traz sorte. Tem lógica? Nem pensar. Faz sentido? Claro que não. Mas cada um sabe dos seus segredos e dos seus tratos com a Natureza.

O ser humano é uma máquina de inventar problemas onde não existem, e eu não sou exceção. Diante da minha aflição, amigos se ofereceram para buscar água do mar para mim, mas a questão não é a água: é o mar. Ir à praia de joelho quebrado no dia 31 nem pensar. Eu jamais sobreviveria àquela gente toda. Mas quem sabe num dia mais calminho? No dia 30, digamos? Ou, vá lá, no dia 29? E ao cair da tarde? A amiga que estava comigo enquanto eu pensava isso em voz alta ouviu tudo muito séria. Deixou que eu dissesse o que tinha a dizer, que raciocinasse como quem não pensa, e aí mandou a pergunta fatal:

-- Vem cá, você já tentou andar de muleta na areia?

Oops.

* * *

Passei o Réveillon em casa bem quietinha, com a família, vendo os fogos da Lagoa pela janela. Foram bonitos, elegantes e assustaram os gatos. Mas assim que eu estiver andando direito novamente vou à praia, fazer as pazes com o mar.

* * *

2007 foi um ano estranho mesmo, cheio de sustos horríveis. Entre a última coluna e a de hoje, a Keaton, de 15 anos, meu xodó, animal não-humano mais inteligente que conheço, esteve entre a vida e a morte na Gatos & Gatos: chegou à clínica em coma diabético, com um prognóstico dos mais sombrios. Pelo telefone, a veterinária recomendou que eu me preparasse para o pior, conselho confirmado por toda a literatura que encontrei na internet a respeito do quadro. As 36 horas que se seguiram à sua internação seriam cruciais; passei-as em claro, arrasada, encontrando conforto, mais uma vez, na força que me deram os leitores do blog.

Eu nunca soube que a Keaton era diabética. Na verdade, nem sabia que gatos podem ficar diabéticos. Pois ficam, e é muito difícil perceber isso, a menos que façam um check-up rotineiro depois de certa idade. Como os humanos, podem viver perfeitamente bem com diabetes, desde que medicados; e, ao contrário de qualquer outra espécie de bicho, podem até reverter a situação e, dentro de poucos meses, não ter mais traço da doença.

Keaton sobreviveu às 36 horas fatídicas. Durante quatro dias, as veterinárias lutaram para estabilizar seus níveis de glicemia e a tempestade de eletrólitos causada pela insulina. Depois voltou para casa, para imensa alegria e alívio de todos, bem a tempo de dar um sabor especial às nossas comemorações de fim de ano. Ainda não está inteiramente boa, sobretudo por causa de uma infecção renal que exige que eu lhe dê antibiótico duas vezes por dia. Como bem sabe quem já teve de dar um comprimido a um gato, essa é uma cena baixa, que em nada contribui para a aproximação entre bípedes e quadrúpedes. Aplicar as injeções de insulina, que me apavoravam, é infinitamente mais fácil. De qualquer forma, o pior já passou.

O detalhe mais estranho em todo o episódio foi a reação dos outros gatos na noite em que a Keaton quase morreu. Eu não tinha idéia da gravidade do quadro, mas eles sim, e, ao contrário do que fazem de costume, não me seguiram até o quarto quando fui deitar. Ficaram todos na sala, perto dela. No fim, acabei me juntando a eles e me espichei ao lado da gatinha, esperando ansiosamente o dia raiar para mandá-la para a clínica.

Assim, antes mesmo do milagre da sua salvação, um outro, de menor monta, acabou acontecendo: consegui me levantar do chão, precariamente escalando as muletas, sem quebrar ou destroncar nada.

Não estou dizendo? No final das contas, 2007 foi mesmo um ano muito bom.


(O Globo, Segundo Caderno, 3.1.2008)

Nenhum comentário: