17.1.08

Vocês já leram; fiz apenas pequenas mudanças


Dias de desapego

Há alguns dias deixei o sofá da sala e a vista para a Lagoa e me enfurnei no escritório, que, em má hora -- duas semanas antes do meu fatídico encontro com o rapaz da moto -- entrou em obras. As estantes antigas, que me acompanhavam há mais de 20 anos e vinham de outras existências, foram substituídas por uma única estante que cobre toda a parede. Agora há mais espaço para livros e menos espaço para tralhas, porque, na reforma, eliminei um gaveteiro, um móvel com (mais!) quatro gavetas, armários na parte de baixo, e um banco cuja parte inferior também era de, adivinhem?... gavetas!

Não chegou a ser exatamente um upgrade. A madeira dos móveis antigos era melhor. Mas o aspecto geral ficou mais claro e aberto, e eu precisava desesperadamente de um espaço onde coubessem, em pé, os livros mais altos que tomaram este mercado de uma década para cá. Por enquanto, todos eles, altos e baixos, grandes e pequenos, estão dispostos de qualquer maneira pelas estantes, de onde, um dia, se Deus me der força e saúde, serão retirados um a um, limpos, e -- aí sim! -- arrumados de verdade. No momento, o importante era tirá-los do caminho para cuidar do resto. Tirei-os.

Mas que resto! E, sobretudo, que dúvidas: um drive SyQuest de meio quilo, capaz de gravar discos com a espantosa capacidade de 1Gb, é lixo lixo, o propriamente dito, ou já pode ser considerado um antique tecnológico? E o primeiro Clié da Sony, do ano 2000, atrás do qual rodei Los Angeles inteira, e paguei ágio de cem dólares sobre o preço de lista, tamanha a demanda? Há alguma hipótese de que eu ainda venha a usar um cabo de extensão de saída paralela? Guardo os incontáveis cabos de rede que foram se juntando ao meu redor? E o Palm V, estado-da-arte em 1999, que não funciona mais? E o modem 3Com que a Velox me trocou por outro, e nunca mais veio buscar?

A certa altura liguei para um amigo que mora aqui perto e que também é viciado em tecnologia:

-- Você quer um Zip Drive de 100Mb? Não funciona, mas, tirando isso, está novinho.

-- Já tenho um no sótão.

-- E um de 250Mb? Está morto, mas tenho até a caixa.

-- Já tenho. Com caixa e tudo, também. E também não funciona mais. Mas, tirando isso...

Bom, com um museu digital tão próximo, não precisei me preocupar com o destino das minhas modernas velharias. Foram para o lixo, com exceção do SyQuest, que é mesmo uma piada diante de qualquer cartão de celular ou pen drive, e do Clié, uma espécie de Palm chique, que é a prova viva (morta) de que nem sempre um grande design resulta necessariamente num bom produto. Também guardei o Rocket eBook que me despertou tanto entusiasmo há dez anos, mas que, na verdade, só serviu para mostrar aos amigos que coisa formidável era aquele objeto em que se podiam armazenar e ler dezenas de livros em formato digital. Quantos alguém leu?

* * *

Nem só de tecnologia obsoleta, porém, transborda o escritório; tenho uma facilidade enorme para juntar bobagens, e uma dificuldade ainda maior para jogar fora. Guardo caixas bonitas, papéis atraentes, fitas, elásticos, clips, envelopes de hotéis, cartões postais, caixas de fósforos, folhetos turísticos, buttons de feiras de tecnologia, pins diversos, sacolas de lojas -- sou uma mulher simples do século XX. Se por um passe de mágica tudo isso sumisse, é provável que eu jamais percebesse. Morro de inveja de pessoas que vivem em casas minimalistas, viajam sem trazer nada e jogam fora os programas de teatro.

* * *

Nesses últimos dias, saíram do escritório uns três sacos de lixo daqueles pretos, enormes, cheios também daquelas coisas vitoriosas pelo poder da inércia: lembrancinha daqui, souvenir dali, caixas quebradas de tudo, apontadores que não apontam, canetas que não escrevem, grampeadores para os quais não se fabricam mais grampos, calendários apenas melancólicos de anos que já se foram, agendas jamais cumpridas. Para tal rearrumação do meu destino, contei com a ajuda da Bia e da minha amiga Heliana, que não têm nada do meu espírito acumulador.

-- Mãe, pelamordedeus! Essa moldura, além de pavorosa, está enferrujada. Desapega!

-- E essa concha horrível aqui, serve para quê?

-- Fui eu que peguei, no fundo do mar. Já estava vazia.

-- Pois devia ter deixado lá. Lixo!

E assim por diante. Com a ajuda das duas desapegadas radicais, o trabalho ficou mais fácil. Mais difícil, em termos de logística, foi resolver a questão das fotos e das cartas, que compõem a vasta maioria de tudo o que aqui não é livro. Uma vez, anos atrás, fiz uma faxina nas cartas; naquela época eu era ainda pior, guardava até cartão de Natal. O que sobrou é imexível. Não consigo me desfazer de cartas, não adianta.

Em relação às fotos -- milhares, em diapositivos, negativos, cópias contato e cópias em papel nos mais diversos tamanhos -- vou, assim que tiver dinheiro, contratar alguém para digitalizar tudo. Com isso, vou ganhar um espaço precioso e, sobretudo, vou me reencontrar com muitas lembranças. Hoje não consigo imaginar nada mais inútil do que um diapositivo, e nada menos prático do que um negativo. Exceto, talvez, a piramidezinha de acrílico com um nó de sisal dentro que servia para... para... ah, não sei.


(O Globo, Segundo Caderno, 17.1.2008)

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