30.1.08


Carnaval sim;
boçalidade não


Alguém me perguntou, outro dia, se gosto de carnaval. Uma pergunta simples, objetiva e direta; pois fiquei perdida, sem saber o que dizer, porque, além de já ter gostado mais, hoje gosto e não gosto, dependendo do tempo, do horário, do tamanho da multidão. Carnaval com o calor senegalês da semana passada? Nem pensar. Carnaval com o fog e a chuva londrinos dessa semana? Menos ainda. Bloco às nove da manhã? Tou fora. Bloco ao cair da tarde? Tou fora também, até porque aí todos já beberam todas e, mais do que me divertir, me aborreço com as inconveniências, a vulgaridade, os mijões a céu aberto. Sabem como é, sou do tempo em que as gentes mantinham certa compostura, inda brincando. Também não gosto de blocos gigantescos, em que milhares de pessoas se empurram de um lado para o outro, cantando a mesma música – em geral, ruim – ad infinitum, e em que câmeras e celulares desaparecem sem deixar vestígios. Vocês estão vendo? Eu sou do tempo em que as pessoas usavam expressões latinas como ad infinitum.

No último fim-de-semana, porém, aí pelas quatro, de um dos quiosques aqui em frente, começou a vir uma batucada linda, num volume razoável que até permitia conversa dentro de casa, seguida de uma seleção de sambas e marchinhas antológicos. Fui para a janela e fiquei observando as pessoas que chegavam de carro ou a pé, as que moram por aqui e correram atraídas pela música, as que vinham distraídas pela ciclovia e, ainda na esquina, começavam a sambar -- e quase chorei de raiva do joelho que me prende. Esse carnaval de bairro, essa alegria espontânea e familiar que conserva a afabilidade e as dimensões humanas, ah, isso eu adoro.

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Ao mesmo tempo, em Laranjeiras, Lucas Landau, que estava cobrindo os blocos, filmou com o celular o momento em que a banda parou em frente à casa de d. Elizabeth -- e o bloco inteiro, como faz sempre, cantou Carinhoso para ela. D. Elizabeth, uma senhorinha de cabelos brancos, apareceu na sua janela de segundo andar e foi muito aplaudida por todos.

Não sei quem ela é nem faço idéia de como ou quando começou essa tradição (socorro, César Tartaglia!), mas o pequeno vídeo despretensioso mostra que o carnaval que me empolga está vivo e bem, e que a nossa Muy Leal e Heróica, em que pesem seus pesares, conserva um bocado do antigo charme. A serenata para d. Elizabeth pode ser vista na Internet em gigantes.notlong.com, e é, garanto, o que há de mais carinhoso. Com ou sem trocadilho.

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Também gosto demais do desfile das escolas de samba e, para minha tristeza, este ano, pela primeira vez em muito tempo, vou ficar longe do Sambódromo. Os sambas andam péssimos, é verdade, mas o espetáculo, como um todo, melhora a cada ano. Quando a gente acha que já viu tudo, aparece algo completamente novo; quando a gente acha que agora realmente já chega, que não agüenta mais ver uma escola sequer, eis que entra em cena uma maravilha imperdível, que garante que tão cedo a gente não vai para casa. Não há como resistir a tanta alegria, tanta dedicação, tanto trabalho, tanta criatividade. Os carros estão enormes? Pois acho bonito. As alas e as baterias estão infestadas de gringos? E daí? Que mal há nisso?! É bom para eles, coitados, que não têm a felicidade de, ano após ano, contar com o maior espetáculo da terra relativamente perto de casa, a umas quantas paradas de trem ou metrô.

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Em suma, pensando bem, acho que gosto de carnaval, sim. E muito. Do que eu não gosto é do rumo cafajeste que qualquer festa coletiva tem tomado no Rio, da falta absoluta de medida em que a diversão de uns acaba virando o inferno de outros. Não gosto dos palcos armados na praia em zonas residenciais, onde os moradores sofrem com passagens de som o dia inteiro e com os shows propriamente ditos pela noite afora; não gosto de blocos com síndrome de trio elétrico, que afogam o canto dos foliões em milhares de decibéis; não gosto dos palavrões berrados como se fossem diálogo normal debaixo das janelas daquilo que outrora se chamava gente de bem, e que não tem nada a ver com a falta de educação dos filhos alheios; não gosto do nível etílico cada vez mais alto em pessoas cada vez mais jovens, e das suas conseqüências freqüentemente funestas.

Finalmente, ainda que compreendendo a disparidade entre a quantidade de banheiros químicos disponibilizados pela prefeitura e a quantidade de cerveja vendida pelos ambulantes nos grandes ajuntamentos, não gosto de ver homens usando árvores ou pneus de automóveis como mictórios em plena via pública – e gosto menos ainda do cheiro com que amanhecem essas pobres áreas amaldiçoadas. Sempre me pergunto por quê os homens cariocas precisam ser tão grosseiros e indelicados. Afinal, ainda estou para ver as mulheres que os acompanham, na bebida inclusive, dando semelhante espetáculo de boçalidade.

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Tiro o chapéu (metafórico) para Bruno Chateaubriand que, confesso, sempre me passou uma impressão de inconseqüência e futilidade, mas que, nas páginas amarelas da Veja dessa semana, com uma sensibilidade à toda prova, deu entrevista da maior dignidade e inteligência. Perdão, Bruno. Até aqui, ao ler sobre você, eu não sabia de quem estavam falando.


(O Globo, Segundo Caderno, 31.1.2008)

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