17.6.04




Teoria da relatividade

Há exatamente 17 dias não tenho notícias do Brasil. Para dizer a verdade, não tenho notícias sequer da Itália, de onde catamilho estas mal traçadas num quartinho de hotel sem qualquer vocação para escritório. Não consegui me conectar à internet para acompanhar o noticiário, mal e mal folheei os jornais locais e, agora me dou conta, não liguei a televisão uma só vez. Percebi que foram realizadas eleições no fim de semana porque, além dos cartazes espalhados por toda parte, vi algumas zonas eleitorais em pleno funcionamento; e, na segunda passada, não pude ignorar o jogo entre a Itália e a Dinamarca porque, como num certo país que conheço muito bem, aqui também tudo pára em função do futebol. O resto, porém, ficou — e ainda está — lá longe, numa dimensão do tempo que, para mim, não aconteceu.

A vida neste pequeno hotel familiar em Veneza segue o seu próprio ritmo. O importante é saber se logo mais chove ou faz sol, se a senhora inglesa da mesa ao lado conseguiu encontrar a amiga que estava procurando, se o moço americano do pé machucado melhorou. Durante o café da manhã trocamos informações uns com os outros sobre as descobertas da véspera: um restaurante bom e razoavelmente barato, uma lavanderia automática, um concerto gratuito, um passeio imperdível.

Todos os dias, religiosamente, os principais jornais da Europa são pendurados num display da salinha da entrada mas, como o tempo tem estado bom, permanecem intocados. Neste mundo rarefeito das férias, não há notícia que supere uma manhã ensolarada.

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Durante a primeira semana da viagem, no entanto, houve um Grande Assunto em pauta: o Campeonato Mundial de Masters de Natação, que Mamãe veio disputar em Riccione — e no qual, aliás, se saiu com o brilho habitual, conquistando sete medalhas. Lá, as notícias realmente importantes, que dominavam todas as conversas, eram, além dos resultados do dia, a temperatura da água (gelada), as condições do vestiário (tétricas) e a desorganização do evento (insuperável). Até eu, que só estava lá de gaiata — e de filha torcedora — acabei envolvida pelo clima geral da competição.

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Riccione, um balneário vizinho a Rimini, estava lotado de atletas. Além dos nadadores, havia saltadores, jogadores de pólo aquático e equipes de nado sincronizado. No total, quase nove mil pessoas, entre 25 e 95 anos de idade, dando um show de determinação e de dedicação ao esporte. Cartazes espalhados pela cidade anunciavam o campeonato, e houve grandes festas de inauguração e de encerramento, com lindas queimas de fogos. O movimento era inacreditável: só na natação, por exemplo, foram dadas mais de 25 mil largadas. Dezenas de recordes mundiais foram batidos, em todas as modalidades.

No primeiro dia, ainda em pleno ritmo de informação contínua em tempo integral, e inocente do que é um campeonato sem interesses financeiros e publicitários, fui procurar a sala de imprensa. O pessoal da organização me olhou como se eu tivesse chegado de outro planeta.

— Sala de imprensa? O que é sala de imprensa?

— Um lugar onde ficam os jornalistas, onde se podem conseguir informações e dados sobre o evento, essas coisas.

— Jornalistas? Aqui?! Aqui não há jornalistas.

E, por incrível que pareça, não havia mesmo. Pelo visto, o esporte que vale e que atrai as atenções é o que a Nike patrocina, o que a Adidas banca, o que a Fila sustenta. É o esporte business , que movimenta bilhões a cada mundial ou Olimpíada — e que, portanto, passou a ser o que conta. Já este outro esporte, feito única e exclusivamente do esforço dos atletas, não existe para o mundo. Não há imprensa nos campeonatos sem cartolas, em que os atletas pagam a inscrição e a viagem do próprio bolso, só pelo prazer e pela honra de defender as cores do seu país.

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Pois é uma lástima que seja assim. Um campeonato de masters é interessantíssimo, e tem muito a oferecer, de disputas emocionantes a considerações sobre o eterno e imponderável sentido da vida. Afinal, não dá para fugir disso diante de fenômenos como a nossa extraordinária Maria Lenk, de 89 anos — que, apesar de ter quebrado a perna em dezembro e de andar com o auxílio de uma muleta, continua com a adrenalina que fez dela uma das maiores nadadoras de todos os tempos.

Para mim, ver Maria Lenk nadar, merecidamente aplaudida pelo público, foi um privilégio excepcional. Estou louca para ver ela, e as outras sereias vintage da turma da Mamãe, repetindo a dose no próximo mundial, daqui a dois anos.

PS: Na foto, em pleno ar, Mamãe, na largada dos 100 metros borboleta.


(O Globo, Segundo Caderno, 17.6.2004)

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