25.2.04




Notícias do carnaval


Tudo continua como sempre, ou seja:
tudo muda o tempo todo



Minha irmã acordou cedo no domingo para tocar piccolo no Boitatá, um bloco de músicos que, sabe-se lá por quê, resolveu sair às nove (!) da manhã. Mais tarde, meus amigos Alexandre e Gabriela, ainda com parte das fantasias de Flintstones que usaram no bloco, separaram dois sapatos velhos que pintaram de dourado para o desfile da Império Serrano, no dia seguinte. À noite, no camarote da Brahma, a Teca, que é da percussão do Monobloco, me disse que uma das maiores emoções da sua vida foi atravessar a avenida, na noite anterior, na bateria da Rocinha. Para não falar na Tereza, da velha guarda da Mangueira, que, aos 73 anos, sai em duas outras escolas pequenas e uma quantidade ignorada de blocos mas pára o trânsito – literalmente - como porta-estandarte do modesto Vai ni mim que sou facinha, que fica pulando ali na esquina mesmo.

O carnaval está em toda a parte, dos horrendos galhardetes dos postes ao triunfo das escolas de samba, mas é nos pequenos detalhes que consegue chegar mais perto e revelar, afinal, o que de fato é e que nunca deixou de ser: uma grande diversão, que cada um curte à sua maneira. Não é mais o que era? Não, claro que não: o carnaval não poderia permanecer imutável num mundo em constante transformação. Está comercializado? É lógico que sim. Com todo o respeito, se até Aparecida do Norte está comercializada, como é que o carnaval poderia não estar?

Também é moda dizer que o desfile das escolas de samba está pasteurizado mas, sinceramente, não vejo nada de pasteurizado na fisionomia das pessoas que desfilam, nem na das que assistem – com exceção de uns tantos gringos, mas esses estão de passagem, e de uma ou outra celebridade instantânea, mas aí o problema não é do carnaval.

O importante é que a essência da festa, que é a brincadeira, continua a mesma. Há tantos carnavais quantos foliões, tanto prazer em pintar um sapato de dourado quanto em fotografar este sapato, tanto prazer em sair num bloco quanto em ver o bloco passar, tanto encanto em desfilar quanto em assistir ao desfile. Apesar de todos os clichês, há sempre muita alegria no carnaval, da confusão das bandas ao luxo dos camarotes. O resto é irrelevante. A folia individual, essa pequena felicidade de realizar fantasias, será sempre maior do que a politicagem, as jogadas de interesse e a roubalheira que cercam a grande festa de todos.

Se calhar, o carnaval resiste até à nostalgia dos que acham que ele está acabado. Afinal, um parente próximo seu, o teatro, está em crise há três mil anos e vai muito bem, obrigado.

* * *

Não há folheto turístico que não diga isso, mas de fato não há nada no mundo que se compare às escolas cariocas como espetáculo. Assisto ao desfile todo ano, e a cada ano tenho a impressão de ter assistido a um novo milagre. Para mim, é incrível ver tantos talentos juntos, tanta criatividade, tanto trabalho; é maravilhoso constatar como tantas pessoas podem se mobilizar de forma tão organizada, mantendo um astral tão bom.

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Consigo entender perfeitamente quem não gosta de carnaval, mas não compreendo quem diz que os desfiles são sempre iguais. Uma coisa é não querer assistir ao espetáculo, não gostar do gênero, achar tudo muito cafona ou simplesmente não ter paciência ou vontade para apreciar o conjunto e observar os detalhes; outra é sequer olhar para o que está sendo mostrado. Mesmo as imagens recorrentes, como os bichos ou índios que enfeitam tantos carros, ou as alas de baianas e as baterias, são tão diferentes entre si que parte da graça acaba sendo, justamente, ver como existem infindáveis variações para os mesmos temas.

O que já foi igual àquele maravilhoso tigre do Porto da Pedra, por exemplo, que rugia quando passava pela gente? O que pode ser igual à mágica da comissão de frente do Salgueiro, que transformou um elefante num grupo de remadores singrando o Pacífico? Quando vamos ver outra multidão de carteiros com cachorros agarrados à canela, ou as estátuas do Aleijadinho em plena avenida, ou uma interpretação tão peculiar do DNA, ou... não, não dá para enumerar as maravilhas, nem para descrever a curiosa relação entre o público e as escolas, sempre surpreendente.

Para achar tudo igual, só mesmo estando de olhos escancaradamente fechados. Eyes wide shut.

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Ah, sim: Feliz Ano Novo!


(O Globo, Segundo Caderno, 26.02.2004)

PS: Tem muitas fotinhas lá no Fotolog...

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