19.2.04



Em defesa do ‘manto sagrado’

A camisa do Flamengo, um dos símbolos mais fortes
da cultura brasileira, deveria ser tombada



Nunca pensei que, um dia, eu fosse escrever sobre futebol. Não acompanho campeonatos, nunca sei de qual Ronaldinho estão falando e, até hoje, só fui ao Maracanã uma vez. Para ver o show do Paul McCartney. Mas sou brasileira e, no Brasil, mesmo quem não gosta de futebol vive futebol; a cultura dos times está no nosso sangue, faz parte de quem somos.

Não posso dizer que “sou Flamengo”, porque imagino que “ser Flamengo” seja acompanhar o time ou, pelo menos, saber quando ele está jogando, e contra quem — e nunca sei nada disso. Mas eu amo o Flamengo.

Meus filhos são rubro-negros, o clube fica praticamente na esquina de casa e, quando penso no que melhor representa o Rio para mim, uma das primeiras imagens que me vêm à mente é a do carioca cheio de marra vestindo a clássica camisa de listas pretas e vermelhas.

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Pois agora vão mudar esta camisa. Ora, na minha cabeça e no meu coração, mexer com a camisa do Flamengo é mais ou menos como mexer com a bandeira nacional. Não tanto pelo clube, mas pelo que representa esta camisa, um ícone tão forte da cultura popular que atende por “manto sagrado”.

Até terça-feira passada, eu achava que isso era maluquice de carioca nostálgica que não entende nada de futebol, e ficava na minha; mas então descobri que já rola, na internet, um lindo texto do Maurício Neves (que mantém o site www.mantosagrado.kit.net) e do Arthur Muhlenberg a respeito do assunto. Como rubro-negros da gema, os dois também se manifestam preocupados:

“A camisa mudou ao longo dos anos, é verdade. Precisou render-se ao patrocínio, não é mais de pano pesado, os números não são mais costurados e o CRF foi trocado pelo escudo, formando uma absurda composição de escudo sobre escudo. Sobrevive no nosso imaginário, porém, sempre do mesmo modo: listras rubro-negras e CRF no lado esquerdo do peito.

A verdade é que a nós, flamenguistas, apavora a possibilidade de que o nosso fornecedor de material esportivo, a Nike, faça com o Manto Sagrado o mesmo que fez com a camisa da seleção brasileira, transformada em um artigo fashion como outro qualquer.”

Pois este é o ponto. Referências culturais são, ou deveriam ser, sagradas — ainda que sejam camisas de futebol. Nelas nos reconhecemos não só como torcedores, mas, sobretudo, como brasileiros. Pôr os interesses econômicos de uma fábrica de material esportivo acima de símbolos tão poderosos da nossa identidade me parece um tremendo gol contra.

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Por falar em gol contra, e a “decoração” carnavalesca da Vivo, patrocinada pela prefeitura? O que é aquilo?! Ainda bem que o Ministério Público já tomou providências. Com a publicidade a gente até convive. O que não dá para encarar é aquela feiúra abjeta.

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Eu vinha voltando para casa no sábado à tarde quando a Eliana Caruso me avisou, pelo celular, que o Redi havia morrido. Eu estava na Visconde de Pirajá, indo em direção à Vinicius, atravessando um bloco qualquer, e tudo me pareceu, de repente, extremamente irreal: receber uma chamada no meio da rua, passar por aquele monte de gente alegre fazendo barulho e, sobretudo, saber daquela morte, daquele jeito.

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Tenho pensado no Redi desde então. A sua própria figura era meio irreal. Nós nos conhecíamos há mais de 20 anos, nos víamos relativamente pouco (ele morava em Nova York) mas, do pouco que eu via, gostava muito — embora nunca tenha ficado claro para mim quem, de fato, era Sílvio Redinger, o Redi.

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Havia toda uma mitologia a seu respeito entre os amigos. Ele era o personagem desajeitado e perpetuamente desligado em torno do qual circulavam mil histórias — algumas rigorosamente verdadeiras — sobre a inaptidão e a perplexidade do ser humano diante do mundo, uma espécie de M. Hulot com toques de Zelig e Mr. Magoo.

Redi cultivava essa imagem e essas histórias. Era o primeiro a contá-las, aparentemente resignado, se não contente, com sua incapacidade de adaptação ao planeta. Mas é óbvio que devia haver nele, também, um fio terra bastante bem conectado, ou não teria sido capaz de perceber, com tanta graça e clareza, as incongruências da vida e da arte. Qualquer arte: além de cartunista, Redi era um músico excepcional, à vontade com praticamente qualquer instrumento. Mas, não fosse quem era, tocava cuíca. Como um virtuose.

Tudo podia acontecer — e em geral acontecia — com o personagem Redi; menos morrer.

Isso não estava no script, não combina, não faz sentido.

Afinal, a graça é que ele sempre sobrevivia a si mesmo.


(O Globo, Segundo Caderno, 19.02.2004)

P.S. Se a coluna de hoje parecer muito familiar, é porque é mesmo: vocês leram aqui antes... ;-)

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