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Da violência — mas sem
perder a ternura jamais
Há algo de errado numa cidade quando qualquer
mãe de família sabe o que é uma AR-15
Eram duas da manhã de quarta-feira e eu estava dando o dia por terminado na redação, quando um dos últimos colegas a ir embora veio me avisar para evitar o Rebouças:
— Tá rolando o maior tiroteio por lá.
Trocamos as palavras usuais a respeito do caso, agradeci a gentileza do alerta e nos despedimos, tranqüilos, apenas o fim de mais um dia de trabalho. Peguei o Santa Bárbara, vi a blitz de sempre em frente ao Palácio Guanabara e não pensei mais no assunto. No dia seguinte, a notícia estava no jornal, mas passei por ela como venho, há tempos, passando pelas notícias do gênero: sem qualquer espanto ou maior interesse. Três dias depois, às duas e meia da madrugada de sábado, voltando para casa com outros colegas num carro do jornal, o motorista apontou:
— Acabaram de matar um cara aí.
Estávamos na Rua Mem de Sá, a poucos quarteirões do Globo. O corpo estendido no chão, coberto por uma manta axadrezada; ao redor, um pequeno grupo de pessoas.
— Eu vi esse cara cair, — disse o motorista, como se estivesse falando sobre um fato corriqueiro. Estava; e continuou. — Eu vinha com o carro quando vi quatro caras correndo, um com uma pistola na mão. O cara aí ainda deu um passo e pá, caiu.
Um dos meus colegas ficou ali perto, na Lapa; o outro em Laranjeiras. Durante todo o trajeto, até a Lagoa, só vimos polícia na blitz do Humaitá, e ainda assim em clima de fim de festa: uns três ou quatro guardinhas encostados no camburão, conversando, totalmente alheios a quem passava.
A cidade não é uma entidade única, uniforme. Ela varia de pessoa para pessoa, moldada por uma série de fatores, dos quais os mais óbvios são, naturalmente, endereço e condições de vida do cidadão. Há, no entanto, variantes mais sutis, determinadas pelo DNA de cada um. Fui feliz na loteria da vida, e vim ao mundo otimista, com uma predisposição natural para gostar do que encontro. O meu Rio de Janeiro é, em geral, amistoso e divertido, cheio de alegria, bons momentos e, até, encontros especiais com capivaras. Mas, convenhamos, não há otimismo que resista a um tiroteio na quarta e a um assassinato no sábado — ainda por cima quando, entre um e outro, a gente lê jornal, vê televisão e ouve trechos das conversas alheias.
— Como é que eu chego até lá? — perguntou um rapaz a outro num elevador em Ipanema, na quinta-feira. — Pela Brasil tem tiroteio, pela Linha Amarela tem tiroteio também...
Fiquei sem saber se havia um caminho seguro até “lá” porque eles desceram no terceiro andar e eu fui até o sexto.
— O cara estava com um revólver na mão, o que é que ele podia fazer? — disse alguém na mesa ao lado, no restaurante, ontem mesmo.
Parecia perseguição, mas não era. Era só a
normalidade me invadindo. Não houve, em nenhum dos casos, qualquer sinal de choque ou de indignação nas vozes; nem havia por quê. A conversa carioca de hoje é assim mesmo, um assalto aqui, um tiroteio ali. A violência deixou de ser um assunto especial. Ela é a realidade, a matéria do dia-a-dia, o ar que se respira.
* * *
* * *
Para mim, a parede pichada é uma das formas mais insidiosas de violência, um dos sintomas mais claros da ausência de qualquer espécie de ordem ou de autoridade na cidade. Nessa anti-estética do desrespeito, do descaso e do desamor, está a proclamação de vitória da bandidagem.
Tá tudo dominado.
Mas eu, otimista que sou, sigo em frente, achando que ainda tem jeito, que um dia conserta. No meu coração, contra todas as evidências, o Rio de Janeiro continua.
Lindo.
(O Globo, Segundo Caderno, 5.2.2003)
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