12.2.04



Minha família e
outros bichos

Nem só de gatos e capivaras faz-se a crônica


Uma das grandes alegrias do meu pai era acompanhar o ir e vir dos lagartos que moravam no sítio. Ele passava boa parte do dia trabalhando na biblioteca (ou "Brilhoteca", como dizia a Bia quando era pequena, e assim ficou) mas fazia questão de ser avisado sempre que algum deles aparecia. Nossos dias em Friburgo eram marcados pelos gritos do Dirceu e da Jandira:

-- Doutor Paulo, lagaaaaaaaaaarto!

Papai deixava de lado o que quer que estivesse fazendo para ir apreciar os tejus, que gozavam de todas as regalias. Podiam invadir o galinheiro à vontade e, mesmo que as galinhas não tivessem posto ovos, não deixavam a área desapontados: nos seus cantinhos favoritos havia sempre um ovo à espera, nem que fosse de supermercado, comprado especialmente para agradá-los. Que eu saiba, nenhum jamais percebeu qualquer diferença entre os caipiras autênticos e saborosos lá de casa e os ovos ralos das granjas.

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O maior dos lagartos tinha um senso de humor muito peculiar: gostava de ir para o galinheiro dar corrida nas galinhas, mesmo já bem alimentado. Depois que elas fugiam espavoridas, virava as três tartarugas de costas, uma por uma, contemplava por alguns minutos aquele espernear impotente, ficava ouvindo o caos cacarejante, e ia embora tranqüilo, com a consciência do dever cumprido.

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As tartarugas eram minhas, resgatadas de vendedores de rua. A primeira era tão pequena quando a comprei que cabia na minha mão fechada. Chamei-a de Quelonious Monk e levei-a para morar comigo no Bairro Peixoto. À noite, quando eu chegava em casa, Quelonious saía debaixo da geladeira para me cumprimentar; durante muito tempo, só comeu na mão, basicamente alface e tomate, embora tivesse um fraco por morangos, cerejas e frutas importadas de modo geral. Mas só vim a descobrir que tartarugas também comem carne quando, mais crescidinho, passou a morder o meu pé com uma determinação impossível de confundir com manifestação de afeto.

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Entre os vários bichos que freqüentavam o sítio, os meus favoritos eram os inquilinos, andorinhas, que uma vez fizeram ninho na lareira, passaram décadas - quantas gerações? - regressando pontualmente à casa e sumiram, misteriosamente, no ano da morte de meu pai. Apesar disso, seu bípede de estimação era mamãe: conversavam com ela, gostavam de observar o que fazia e, às vezes, até pousavam nos seus ombros.

Mamãe, por sua vez, se encarregava de encontrar as soluções possíveis para os diversos problemas estratégicos criados pelas andorinhas, que teimavam em fazer ninho nos lugares mais inconvenientes - a começar, justamente, pela lareira. Em pleno inverno! Quase congelamos naquelas férias mas, por outro lado, nos divertimos muito vendo os filhotes aprenderem a voar.

Na temporada seguinte, encontrando a chaminé fechada com uma grade, os inquilinos optaram por se instalar na parte mais alta do armário dos meus pais. Um arranjo mais conveniente para a família, como um todo, mas meio complicado para papai e mamãe que, volta e meia, acordavam com um filhote estatelado entre eles, na cama. Madrugada sim madrugada não, lá ia mamãe, na noite polar sub-ártica de Nova Friburgo, buscar a escada para devolver passarinhos ao ninho.

Depois de alguns anos de alpinismo noturno involuntário, ela resolveu convencer as andorinhas de que o banheiro, sim, era o lugar perfeito para um lar de pássaros. Para isso instalou, em cima da porta e na mesma altura do armário, uma caixinha com sobras do ninho anterior, fechando-a com cortinas iguais às do armário.

A mensagem, porém, não foi imediatamente captada pelos inquilinos que, dando com a janela do quarto fechada, de fato aprovaram o banheiro - mas preferiram a pia, que prontamente começaram a encher de palha. Mamãe a recolheu e pôs na caixa de cortinas, sob o olhar atento das andorinhas que, ato contínuo, trouxeram mais palha para a pia. De onde mamãe a retirou ainda algumas vezes, até que, afinal, os inquilinos se instalaram na caixinha, à qual retornaram, ano após ano, por tanto tempo.

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Tivemos, bípedes com e sem plumas, uma ótima convivência. As andorinhas sentiam-se perfeitamente à vontade, e só reclamavam quando fazíamos barulho ou acendíamos a luz à noite. Para não contrariá-las, passamos a tomar banho com o dia claro; quando escurecia falávamos baixinho no corredor e, na medida do possível, evitávamos acender a luz do banheiro. O privilégio de conviver com os inquilinos mais do que compensava esses pequenos inconvenientes. Fomos todos muito felizes.

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O título da coluna de hoje foi emprestado de um dos meus livros favoritos, "My family and other animals", de Gerald Durrell. Menos conhecido, mas para mim mais importante do que seu irmão, Lawrence, o do famoso "Quarteto de Alexandria".



(O Globo, Segundo Caderno, 12.2.2004)

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