28.7.11

Pensando na vida




No próximo domingo faço anos. Muitos anos. Ainda me lembro que, quando fiz 50, escrevi uma crônica sobre este espantoso número; hoje, pessoas de 50 anos já me parecem bem novinhas. Não que esteja descontente com a minha idade, pelo contrário: me sinto bastante confortável na pele etária, e só lamento não poder dizer o mesmo em relação à pele propriamente dita -- ou, para ser exata, ao que se encontra por baixo dela. Tivesse eu 58 quilos e nada mais pediria aos deuses em relação à minha então esbelta pessoa.

A luta eternamente perdida contra calorias e fitas métricas mal intencionadas é frustrante, mas – no meu caso ao menos -- não chega a ser um drama. Se eu fosse uma ilha, seria uma ilha na medida do possível feliz. Não sendo, este é um aniversário que tenho vontade de riscar do calendário, junto com todos os outros dias do ano. Quem diria que uma sucessão de algarismos tão bonitinha – 2-0-1-1 – seria capaz de trazer tanta tristeza e sofrimento.

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Não ser uma ilha, porém, tem o seu lado bom: é que, apesar de tudo, sempre há o que comemorar. No dia seguinte ao meu aniversário, Fábio e Nina, os gêmeos da Bia e do Sérgio, fazem dois anos. Já são pessoinhas com personalidades bem definidas, capazes de expressar seus gostos e vontades. 

Tento imaginar as forças culturais que os formarão, mesmo sabendo, de antemão, que qualquer tentativa nesse sentido é inútil. O mundo nunca mudou tanto em tão pouco tempo; quando eles nasceram, os desktops já haviam deixado de ser objetos de desejo e as câmeras dos celulares já tinham 5 megapixels; no universo ao seu redor, que mal começam a apreender, wi-fi é tão comum (e necessário) quanto luz elétrica.  

Eles associam fotos e videos aos telefones dos pais, brincam com tablets e provavelmente vão se alfabetizar com algum game. Ao mesmo tempo, adoram livrinhos coloridos, e convivem com jornais e revistas de forma intensa. Dentro em breve, estarão assimilando mais informações por ano do que as gerações antigas assimilavam durante toda a vida; e saberão lidar com isso muito melhor do que nós, que crescemos em ritmo de valsa e vivemos, agora, com esse funk absurdo nas caixas.

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O estado de Indiana, nos Estados Unidos, acaba de recomendar às escolas que não se preocupem mais com a caligrafia e, em vez disso, tratem de ensinar às crianças como usar melhor os computadores. A recomendação faz todo o sentido, e é apenas o primeiro dos dominós de uma fila que vai cair num piscar de olhos. Em menos tempo do supomos, escrever será algo que faremos única e exclusivamente por meios eletrônicos. Aliás, já é; ou quase. Reparem: à exceção de uma anotação ligeira ou da assinatura de um cheque, muitos de nós já não escrevemos mais nada à mão.

Ao longo da semana, educadores e psicólogos manifestaram apreensão em relação à medida. A teoria é que a dissociação do pensamento e do gesto poderia perturbar o desenvolvimento cerebral e a coordenação motora das futuras gerações. Tenho minhas dúvidas. Durante milênios a humanidade foi analfabeta e, mesmo depois que inventou a escrita, escrever foi, por muitos e muitos séculos, profissão de reles escribas, incumbidos de registrar as transações comerciais e a História oficial. Os verdadeiros pensadores usavam apenas o cérebro e a memória, e nem por isso tinham problemas de coordenação motora.

Importante não é com o que se escreve, mas o que se escreve.

Fábio e Nina terão provavelmente uma péssima caligrafia, no que não serão em nada diferentes da avó, mas isso não fará nenhuma diferença em suas vidas, posto que a caligrafia está em vias de extinção. Em troca, terão outros talentos, que possivelmente nunca desenvolvemos, e uma visão infinita do mundo, uma amplidão de horizontes que geração alguma teve antes.  

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Em fins de julho do ano passado, eu estava com Mamãe na península escandinava. Como boas brasileiras, ficamos impressionadas com a limpeza, a ordem e a qualidade de vida que notávamos ao nosso redor. Tudo funcionava, e funcionava bem. Ir aos restaurantes era surpreendente: ao contrário do Brasil, onde cada mesa fala mais alto do que a outra, as pessoas praticamente murmuravam e, alívio dos alívios, era possível manter uma conversa sem precisar gritar.

Em Oslo não havia uma palha fora do lugar. Fomos a um jardim de rosas que parecia retocado em Photoshop, de tão colorido e perfeito. Estava cheio de gente, mas ninguém tocava nas flores, ninguém jogava nada no chão, ninguém fazia nada que perturbasse a paz.

Todas as pessoas com quem conversamos falavam com orgulho do país e das suas conquistas, dos bons salários e da vida bem resolvida que tinham.

Para mim, que gosto de arrumação ma non troppo (ninguém cresce no Rio impunemente), a Escandinávia passou do ponto; eu morreria de tédio vivendo lá. Ainda assim, não há como negar que, lá naquelas terras geladas do Norte, a civilização chegou ao seu ponto máximo.

Foi um choque descobrir, de repente, que uma sociedade tão perfeita pode gerar um ser tão imperfeito quanto o terrorista Anders Breivik. Como é que alguém que cresceu naquelas ruas limpas e naqueles parques arrumados, entre pessoas cordiais e comportadas, pode dar tão errado?

A única resposta que me parece plausível é, ao mesmo tempo, a mais difícil de aceitar: Breivik deu errado não por ser norueguês, é claro, mas simplesmente por ser humano. A sociedade à sua volta e a qualidade de vida que recebeu desde o berço são o que o mundo tem a oferecer de melhor. Se nem isso basta para evitar a criação de um monstro, o mundo, tal como o fizemos, não tem mesmo jeito.
  

(O Globo, Segundo Caderno, 28.7.2011)