21.7.11

Livro máximo



 “Dentro em breve, haverá mais gente vivendo na cidade de Bombaim do que no continente da Austrália. A placa do lado de fora do Gateway of India diz “Urbs prima in Indis”. É também “Urbs prima in mundis”, pelo menos sob um aspecto, o primeiro teste de vitalidade de uma cidade: o número de seus habitantes. Com 14 milhões de pessoas, Bombaim é a maior cidade no planeta de uma raça que vive em cidades. Bombaim é o futuro da civilização urbana no planeta. Deus nos ajude.”  

Assim – ou mais ou menos assim, porque não tenho a edição brasileira e traduzi este primeiro parágrafo – começa “Cidade máxima”, de Suketu Mehta, um dos melhores livros que já li, e que foi recentemente lançado aqui pela Companhia das Letras. Mehta, de uma família de comerciantes espalhada pelo mundo, nasceu em Calcutá, cresceu em Bombaim, passou a adolescência em Nova York e dividiu-se entre vários países até decidir voltar à cidade que ficou no seu coração. Era difícil ver os filhos em Nova York, ainda crianças e já vítimas de preconceito; era importante que pudessem crescer num país onde todos fossem iguais a eles, onde não fossem, por definição, estrangeiros.

A volta para Bombaim, porém, não tem nada de fácil. Acostumado à eficiência de Nova York, o recém-chegado esbarra num problema depois do outro. Os aluguéis são estratosféricos, os donos dos apartamentos se recusam a alugar para outros indianos, conseguir uma linha telefônica é uma luta, conseguir a ligação da luz e do gás um martírio. A cada etapa do processo é preciso distribuir gorjetas e propinas. No prédio antigo onde afinal se instala, os canos estão entupidos, há vazamentos constantes, e não há, naturalmente, bombeiros que os consertem. O céu cheio de maritacas que Mehta guardou entre as lembranças da infância transformou-se numa nuvem de poluição pestilenta. Isso é só o começo.

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Suketu Mehta é, antes de tudo, um repórter, e narra a cidade através de encontros com seus habitantes, mais ou menos como V. S. Naipaul fez em “Índia -- um milhão de motins agora”. A diferença é que, enquanto Naipaul mantém distância dos seus entrevistados, Mehta toma as suas dores. Torna-se amigo de uma família de favelados e acompanha a sua ascensão social, consegue acesso aos piores bandidos e aos melhores policiais (a distinção entre as duas categorias não é sempre clara), freqüenta a alta sociedade, torna-se co-autor do roteiro de um filme estrelado por um dos principais galãs de Bollywood (“Operação Kashmir”, com Hrithik Roshan), fica íntimo de uma dançarina de cabaré. Até à casa de Amitabh Bachchan ele vai. Amitabh Bachchan, para quem não sabe – e, no Brasil, quase ninguém sabe -- é o astro mais famoso do mundo. Ele traça, em suma, um poderoso retrato da sociedade que compõe a urbs prima in indis, outrora uma linda cidade à beira-mar, hoje tão degradada que é de se admirar que alguém ainda queira viver lá.

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Nada do que Suketu Mehta escreve nos é estranho. Não chegamos aos extremos atingidos por Bombaim, mas não estamos tão longe. O trânsito não anda, a corrupção corre solta, a burocracia não funciona, a bandidagem dá as cartas, a extrema miséria e a extrema riqueza convivem lado a lado. Há muitos trechos de “Cidade máxima” que li como se estivesse vendo um retrato do Rio. Realmente -- como é que alguém pode viver num lugar desses? Pior: como é que alguém pode querer viver num lugar desses?! Acho que a explicação está naquele primeiro parágrafo: somos, essencialmente, uma raça de urbanóides.

Muitos de nós, que moramos no Rio, poderíamos, em tese, mudar para uma cidade do interior. Temos os recursos e, feitas as contas, sairia bem mais barato, para não mencionar que levaríamos uma vida muito mais saudável junto à natureza. Volta e meia, num momento de fúria, ameaçamos ir embora. E vamos? Que nada. Continuamos aqui, fascinados pelo enredo que nos rodeia e pela cidade que canta e ruge lá fora -- enfeitada, agora, por bueiros explosivos.

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Suketu Mehta escreve com o desespero e o fervor de quem viu uma cidade amável se transformar num lugar caótico no seu tempo de vida. Ele viu a mutação de passarinhos verdes em sacos plásticos voando ao vento, e a praia da sua infância convertida em favela, sob o olhar complacente e corrupto das autoridades. A lembrança do que era e nunca mais será atravessa o livro como a visão da degradação do Rio atravessa o coração de qualquer carioca que teve, um dia, a felicidade de sair direto do cinema para a brisa da Avenida Atlântica -- e ainda voltou a pé para casa, sem um pingo de preocupação na noite.

“Cidade máxima” é um grande livro sob qualquer perspectiva e em qualquer quadrante, mas não sei se tem a mesma reverberação emocional em todos os cantos. Tenho a impressão de que, na península escandinava, deve soar como algo exótico e meio fantasioso, assim como é possível que escape aos leitores belgas ou suíços, por exemplo, o que leva alguém a amar tão intensamente uma cidade tão maltratada. Nós sabemos. Não é um mérito, mas nos dá um grau especial de intimidade com a leitura.

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Um ouriço-cacheiro agonizava, anteontem, numa rua do Jardim Botânico. Caiu de uma árvore. Pessoas de bom coração fizeram um cercadinho de obstáculos ao seu redor, para que não fosse atropelado. Outras ligaram para o Ibama, pedindo socorro. 

A resposta?

-- Atenderemos ao seu pedido dentro de sete dias úteis.


(O Gçobo, Segundo Caderno, 21.7.2011)