20.8.09

Os campeões mundiais do tiro no pé



Imagine o seguinte: você é um daqueles agentes de imigração dos Estados Unidos que ficam no balcão carimbando os passaportes de quem entra no país. O seu trabalho é perguntar aos alienígenas que visitam o país o que vieram fazer, onde vão se hospedar e quanto tempo pretendem ficar. Você checa se os vistos estão dentro do prazo de validade, se os retratos guardam um mínimo de semelhança com o exausto passageiro à sua frente e se há, no computador da TSA, alguma observação referente àquela criatura. Você sabe que, graças à sua inteligência e conhecimento dos seres humanos, seus compatriotas dormem mais seguros à noite: nenhum terrorista ou imigrante ilegal escapará à sua perspicácia.

Você tem super poderes e pode decidir quem entra no país ou quem vai para “interrogatórios adicionais”, onde outros agentes igualmente bem preparados vão tirar um sarro dos viajantes. Não há nada que eles possam fazer se vocês decidirem prendê-los ou mandá-los de volta para casa, sem uma palavra de explicação. A coisa toda é uma espécie de “No limite”, com a diferença de que é para valer.

Um dia, aparece à sua frente um sujeito vindo de Mumbai. O camarada, que causa frisson entre os demais da fila, fala inglês perfeito e tem um passaporte da grossura de um catálogo telefônico, cheio de carimbos de todas as partes do mundo. Esteve pela última vez nos Estados Unidos há poucas semanas. Quando você pergunta o que ele faz e o que o traz, ele responde que é ator de cinema, e que veio para um show. Você olha para o sujeito, que não tem a menor cara de ator – nem louro ele é! -- olha para o passaporte e olha para o computador, onde pisca um alerta: Khan! Khan! Khan!

E aí, o que é que você faz? Leva em conta o jeitão despachado do cara, o passaporte mega carimbado e a agitação que ele causa entre os compatriotas, ou aposta no perigo que é um Khan, o verdadeiro Silva dos muçulmanos? A sua mente trabalha febrilmente: o que representam um passaporte em dia, um visto em perfeita ordem, centenas de viagens comprovadas e um bando de fãs diante da onisciência do computador? Interrogatório nele! Alguns dos seus colegas até garantem que o conhecem, mas nada mudará a sua decisão. Você pode, você manda. Yes, you Khan.

Parece piada, mas o fato é que só depois da intervenção de diplomatas indianos o ator Sharukh Kahn pode, finalmente, deixar o aeroporto de Newark. A essa altura, o Twitter fervia, as emissoras indianas rugiam e alguns milhões de muçulmanos protestavam, em polvorosa. Isso foi na sexta à tarde. Na segunda, o incidente já era tópico na biografia de Khan na Wikipédia. Na terça, o Google relacionava 2.308 artigos sobre o assunto, que conseguiu derrubar a gripe suína das manchetes em todos os países onde Bollywood é popular -- e que, diga-se, já não morrem de amores pelos EUA. Escrevo na madrugada de quarta e o caso continua rendendo.

É impossível explicar a popularidade de Sharukh Khan para quem não conhece o cinema indiano. Feioso de um jeito engraçado, simpático e absurdamente carismático, ele é considerado o rei absoluto de Bollywood. Só perde em fama para Amitabh Bachchan, mas, aos 66 anos, Bachchan tem 23 anos de dianteira. Aos 43, Sharukh fez mais de 70 filmes, entre eles o clássico “Dilwale Dulhania Le Jayenge”, que está em cartaz há 14 anos em Mumbai. Vocês leram certo: catorze anos! A relação dos indianos com o cinema é ligeiramente obsessiva, e com os seus atores, então, nem se fala. Khan é reverenciado como um deus e, no ano passado, foi considerado um dos 50 homens mais influentes do mundo pela revista americana “Newsweek”.

Há artigos e opiniões para todos os gostos nos debates que continuam acesos na internet. Para além da fúria dos fãs, há, sobretudo nos EUA, quem ache ótimo que uma super celebridade receba tratamento de mortal comum. Quem defende este ponto-de-vista sustenta que a TSA estava fazendo direito o seu trabalho, já que segurança vem em primeiro lugar.

O primeiro problema que vejo nisso é a contradição que essa opinião encerra. Agentes que levam duas horas para chegar à conclusão de que um dos homens mais famosos do mundo é ele mesmo não estão preparados para as funções que exercem. Se consultassem o Google, levariam apenas 0,31 segundo para encontrar 4.310.000 referências a ele. Além disso, não há quem mereça o tratamento que a TSA dispensa aos detidos.

O segundo problema é a noção de que submeter passageiros à tortura que se tornou viajar para os EUA tem alguma coisa a ver com segurança, quando a maioria dos procedimentos é apenas a face mais visível da cultura do medo difundida por Bush. Cheguei a ler opiniões defendendo “normas de segurança” que impediram o senador Ted Kennedy de embarcar em quatro diferentes ocasiões, apesar de ter sido sempre reconhecido, por ter um homônimo numa lista negra. Isso não é “norma de segurança”, é burrice aguda.

O mais grave de tudo, porém, é que há, sim, um sério viés de discriminação racial, social e religiosa por trás das detenções da TSA. Se não nos faltam casos de brasileiros deportados nos próprios aviões em que chegam, imaginem o que não acontece com a população do sudeste asiático. Está tão feia a coisa que em breve chega ao cinema: o diretor Karan Johar está dando os retoques finais num filme sobre a discriminação racial que sofrem os indianos muçulmanos nos Estados Unidos.

O título do filme é “Meu nome é Khan”, e ganha uma samosa quem adivinhar quem é o protagonista.


(O Globo, Segundo Caderno, 20.8.2009)

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