6.8.09

O borogodó do bodó



Contei, semana passada, uma aventura gastronômica amazonense: traçar um bodó assado com farinha. Não haveria nada demais nisso se o bodó não fosse um peixe feio e fedorento de dar medo. Leitores mais familiarizados com a criatura escreveram para trocar lembranças, matar saudades dos sabores da Amazônia, dar receitas, esclarecer alguns pontos e obscurecer outros. Renan Silva, por exemplo, é íntimo do bodó, e o que ele escreveu é muito interessante:

“O que você descreve é, na realidade, o acari-bodó, um tipo de peixe cascudo só encontrado nessa região, e que, por suas características pré-históricas (crânio achatado, escamas que formam carapaça, capacidade de respirar fora d'água em períodos de seca), nem merecia ser comido, o coitado.

É da família dos "Plecostomus", nome que referencia seu tipo de boca que atua como um sugador, permitindo que ele se alimente de vegetação e algas no fundo dos rios, bem como se fixe a superfícies tais como vidros de aquários.

Já que você é viciada em livros como eu, recomendo a leitura de "Your inner fish - A Journey into the 3.5 billion-year history of the human body", onde poderá constatar que nós, humanos, temos em algum ponto um ancestral comum com o primo bodó. Veja especialmente as páginas referentes ao fóssil "Tiktaalik" e aos peixes da família dos "Ostracodermos". Na Wikipedia há também diversas páginas referentes ao acari-bodó e seus congêneres, inclusive com fotos.

No mais, deixemos o pobre bodó em paz. Já não basta comermos o Pirarucu, outro fóssil vivo?”

Encomendei o livro, é claro, e fiquei me sentindo muito culpada com o que o Renan escreveu; além de comer um “primo” assado, ajudei a diminuir a quantidade dos poucos fósseis vivos que ainda existem. Mas quem me deixou arrasada mesmo foi a Márcia Amaral, que tem aquário e adora peixes, no sentido emocional, e não culinário, da palavra:

“Você comeu um peixe da familia dos peixes-gato, ou cascudos. Aliás, eu morri de pena de ver os pobres cascudinhos ali mortos... Eles são peixes espertos, e tão simpáticos! Podem ser treinados e ficam mansinhos. O cascudo tem seu tamanho regulado pelo tamanho do aquário. Lá no centro da cidade tem um aquário imenso onde vive um cascudo de mais de um metro. Eu mesma já tive cascudos de mais de dez centímetros.

Tinha um, simpaticíssimo, que vinha pegar o stick de comidinha na minha mão. Ele ficava esperando na frente do aquário e, quando eu punha a mão com o stick na água, vinha correndo e puxava o stick. Ia comer escondidinho.”

Quer dizer: o bicho é um fóssil vivo, é esperto, simpático e mansinho, e ainda atende por peixe-gato? Ainda bem que não me contaram nada disso em Parintins, se não eu teria me desmanchado em lágrimas. Coitados dos bodós!

Por outro lado, o Marcelo BM me deu certo alívio retroativo ao descobrir na página do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia uma entrevista com o pesquisador Fábio Tonissi Moroni, que desmente a informação de que o bodó se decompõe rápido por se alimentar de fezes. Segundo o pesquisador, que há pouco tempo defendeu tese exatamente sobre isso, esta é uma crendice popular sem qualquer comprovação científica.

De acordo com o professor Moroni, o bodó, que não é encontrado em nenhum outro lugar do país, é personagem de toda espécie de mitos, e ótimo assunto para puxar conversa com ribeirinhos. Ele conta que, para algumas vertentes da tradição indígena, o bodó vira sapo ao sair da água e perder a cauda -- o que não deixa de ser mais um atestado do seu peculiaríssimo aspecto.

O professor confirma o que o Renan escreveu e o que ouvi em Parintins, que o bodó é típico da região amazônica, e que não se pode encontrá-lo em nenhum outro canto. Mas, mistério dos mistérios, várias pessoas me contaram que é muito apreciado em outras partes do país.

“O peixe que você degustou lá na Amazônia também faz parte da culinária daqui, pertinho de você, no Noroeste Fluminense”, escreveu Camilo de Lellis (com quem faz eco Nicomedes Martins). “Conhecido por aqui como cascudo ou caximbau, vive nos rios Muriaé, em Itaperuna, e Pomba, em Pádua, e se alimenta do limo das pedras. É servido frito ou em moquecas (molho de tomate, pimentão e cebola), acompanhando de pirão e arroz branco, por R$ 25, em média. Também se encontra no São Francisco, porém tem mais sangue, não sendo tão saboroso e com a carne tão branquinha como os daqui. Portanto, quando vier a Itaperuna, peça moqueca de cascudo ou cascudo frito. Mas com a cabeça, porque senão podem te servir um similar, que é o cambotá (peixe-voador).”

Rafael Coelho, que nasceu em Guapimirim, no pé da serra de Teresópolis, logo ali, escreveu um email que, a bem dizer, merece o nome de carta. É longo, bonito e nostálgico, e fala da sua infância – no outro dia, tem apenas 23 anos – quando passava as tardes pescando nos rios. Os bodós, que chama de cascudos, eram os mais fáceis de pegar. Ficavam pelas pedras, bestando e comendo o limo, e deixavam-se agarrar com as mãos. Pela cabeça do Rafael, é bom que se diga, nunca passou a idéia de comê-los. Eram pegos e soltos, ou levados para os aquários. No auge da paixão pelo hobby, chegou a ter 14 de uma vez só (“demorei a entender que o lugar certo para os peixes viverem era o rio”) e, lendo sobre o bodó, sentiu saudade dos tempos em que a vida era mansa e descomplicada.


(O Globo, Segundo Caderno, 6.8.2009)

2 comentários:

Anônimo disse...

Bacana o relato, mas a parte de terpena dos bodós não vale. Bodós não são excessivamente explorados para consumo. Se houver alguma ameaça atuando contra bodós, seria pela degradação do meio ambiente de que dependem; ao menos aqui no Acre, tem bodó demais! Diferente do também citado pirarucu: esse sim, é crime (legal e moral)comer, exceto os criados em cativeiro ou manejados. Sobre comer um fossil-vivo... Bom, fósseis vivos não existem, pois se está vivo, não é fóssil. Pode até se parecer com animais ancestrais, mas não são, são perfeitamente adaptados ao contexto encontrado, do contrário u não existiriam ou estariam em declínio populacional matural (seria muito difícil identificar tal situação. Quanto à comermos peixe... Temos que comer alguma carne, afinal! Não somos vacas ou outro animal exclusivamente vegetarianos. Até chipanzés comem esporadicamente carne, na natureza. Antes bodós que bois, que destroem a floresta. Bejs!

Anônimo disse...

Meu nome é Natália e endereço é natalia.curitiba@gmail.com . Bjs!