13.8.09

“O império do sol” redux




Shanghai era uma festa nos anos 30. Europeus e americanos passavam os dias bebendo e as noites na farra. O dinheiro era farto e as oportunidades infindáveis. A vida era ao mesmo tempo feérica e lânguida, cercada de luxos e de serviçais. Jogava-se bridge, golfe e pólo, apreciavam-se shows de acrobacia aérea e, nos fins-de-semana de tempo bom, caravanas de carros chiques seguiam para a praia ou para o campo.

Pelo caminho, entre as concessões estrangeiras, cruzavam-se as ruas da cidade, ocupadas por multidões de chineses miseráveis. Das calçadas emanava um perpétuo cheiro de esgoto e de frituras. Caminhões da prefeitura recolhiam, sem cerimônia, os mortos do dia anterior, vítimas de epidemias ou da fome. De cima da ponte ou dos ferries que cruzavam o rio Nantao, outros incontáveis cadáveres flutuavam ao sabor da corrente e das marolas dos barcos. Suas famílias, pobres demais para comprar caixões, os enfeitavam com flores de papel e os lançavam às águas.

Criança ainda, JG Ballard aceitava este mosaico incongruente e cruel sem pensar muito. Aquele era o mundo que o cercava, a única realidade que conhecia. Não era infeliz, mas só descobriu algo próximo à felicidade mais tarde, quando a guerra começou, os japoneses tomaram a cidade e os estrangeiros foram enviados para campos de prisioneiros. Lá as famílias tinham que dividir espaços exíguos e, pela primeira vez, o menino, que passava o tempo com os empregados na casa enorme, pode conviver com os pais.

Não é de admirar que, ao se tornar adulto e escritor, Ballard tenha enveredado por um tipo peculiar e agressivo de ficção científica. Depois de viver aquela realidade, o que é que ele poderia inventar, além de uma versão surrealista – e não raro profética -- do mundo? Sua visão mórbida e pessimista influenciou, de forma radical, toda a imaginação posterior do futuro; sem ele, não teríamos nem “Blade runner” nem “Matrix”, para ficar apenas em exemplos emblemáticos.

De todos os romances e contos que escreveu, só dois foram transformados em filme: “Crash”, de David Cronenberg, que seus fãs mais ardorosos desprezam (mas que o próprio Ballard achava genial) e “O império do sol”, para mim a obra-prima de Steven Spielberg. “O império do sol” é, por acaso, um Ballard atípico. Nele, em vez de olhar para o futuro, o autor olha para o passado, e recupera, com alguns toques de ficção, as memórias da infância. Apesar das circunstâncias trágicas, há ali uma luminosidade e uma ternura indisfarçáveis que, no lançamento, em 1984, trouxeram para os leitores uma dimensão inesperada do escritor. Foi esquisito. A turma hardcore da sci-fi detestou; e a legião de novos leitores conquistada pelo filme ficou em estado de choque ao buscar o resto da sua literatura.

Tenho, em particular, uma ótima lembrança deste livro, publicado bem na época em que enjoei de ficção científica. Ele me permitiu guardar um espaço especial no coração para o velho Ballard, cuja morte, em abril deste ano, lamentei profundamente.

* * *

Em 2006, ao descobrir que estava com câncer, JG Ballard resolveu, mais uma vez, olhar pelo retrovisor. O resultado, que publicou ainda com vida na Inglaterra, chama-se “Milagres da vida”, e acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras. É um livro pequeno, de 245 páginas, e é encantador. Há muitas histórias interessantes, que revelam o pensador inquieto e admirável, mas o melhor está na primeira parte, praticamente uma versão condensada de “O império do sol”. A questão é que, sem o artifício da ficção e com a pressa de quem sabe que não tem muito tempo, o autor é direto e conciso, deixando de lado os artifícios da escrita e liberando a fala do homem.

Nenhum período histórico assistiu a mudanças tão profundas quanto o século passado, e Ballard foi testemunha atenta dessas mudanças, seja na formalidade dos costumes, na distância entre pais e filhos ou na alma de um império onde o sol, enfim, começou se pôr. A sua descrição da alienação dos ingleses de Shanghai é assustadora: basta dizer que, tendo nascido na China e lá vivido toda a infância e adolescência, ele nunca chegou a aprender chinês. Não era necessário. A vida que a aristocracia cristã levava em Constantinopla em 1453 não deve ter sido muito diferente.

É no campo de estrangeiros de Lunghua, curiosamente, que aquela gente estranha passa a viver de uma forma, se não natural, pelo menos mais próxima à normalidade. A barreira da idade e das classes sociais desaparece, e adultos e crianças, que antes mal se dirigiam a palavra, passam a conversar entre si. A comida é escassa, o conforto inexiste, mas peças de teatro, palestras e uma escola são improvisadas, na criação de uma nova cidade, um favelão onde todos se dão conta de que nada é mais parecido com um ser humano do que outro ser humano.

Quando pisa na Inglaterra pela primeira vez, terminada a guerra, o menino que não falava chinês descobre que tem muito pouco em comum com o país auto-referente e acabrunhado a que sua família se refere como “pátria”. A essa altura, porém, tomada pelos comunistas, a velha Shanghai, isolada do mundo, já não existia mais. A única volta possível era através das memórias. Sorte nossa que JG Ballard ainda pode dividi-las conosco e nos levar na viagem.


(O Globo, Segundo Caderno, 13.8.2009)

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