20.11.08


Não podia ser melhor

Uma regra básica para o cronista que deseja viver em paz com o seu semelhante é nunca, jamais, escrever sobre livros dos amigos. Híbrido de jornalista e escritor, o cronista vive com os dois pés plantados em diferentes campos minados: de um lado a redação, do outro o mundo editorial, do qual freqüentemente faz parte. Num e noutro, todos à sua volta ganham a vida escrevendo -- o que significa que, semana sim e outra também, haverá alguém próximo ao cronista lançando livro. Ora, basta cair em tentação uma única vez, e o cronista perderá não só o sossego como, provavelmente, a credibilidade. Como escrever sobre o livro de Fulano sem magoar Beltrano? E, acima de tudo, como escrever sobre os livros de Fulano, Beltrano e Sicrano sem torrar a paciência do distinto público, e sem que ele -- o distinto público -- se canse daquela ação entre amigos e passe a desacreditar do cronista?

Por outro lado, o que fazer quando, eventualmente, um amigo escreve um livro excepcional? Puni-lo pela amizade? Seqüestrar dos leitores o segredo da descoberta? No caso, qualquer atitude dessas seria uma bobagem, até porque, a menos que se publique, nos próximos 41 dias, algo muito extraordinário e fora do comum, “Os irmãos Karamabloch” (Companhia das Letras, 339 páginas), do meu amigo e colega de espaço Arnaldo Bloch, é, disparado, o melhor livro brasileiro que li este ano.

Acontece que eu não levava a menor fé no projeto. Há anos via o Arnaldo às voltas com o livro, ora cheio de entusiasmo, ora cheio de reticências; e tudo o que conseguia pensar é que aquela era uma luta inglória, fadada à poeira dos sebos. Não pelo assunto, porque sempre há o que se contar sobre homens que constroem impérios do nada, mas pela proximidade do Arnaldo, neto de Adolpho, com o tema que escolhera.

Para começo de conversa, a família Bloch sempre foi, para dizer o mínimo, bastante controvertida. Os irmãos, sobrinhos e parentes diversos que dirigiam a editora detestavam-se uns aos outros, pelo que se ouvia na praça, por bons motivos; e o respeito pelo dinheiro alheio, pela ética e pelas regras mais simples da convivência não chegava a ser norma da casa. Tudo isso, nem preciso dizer, é fonte de material literário da melhor qualidade; mas só se for tratado como é, e pelo que é. Qualquer tentativa de suavizar a realidade acabaria com o magnífico potencial da história. Que alguém de fora fosse à luta e pusesse no papel a saga dos Bloch, tudo bem; mas conseguiria o Arnaldo falar da própria família com o necessário desassombro?

* * *

Comecei a ler o livro na quinta-feira. No sábado à noite, quando terminei, fiquei um bom tempo parada, olhando para o teto, perplexa com a aventura que vivera. Escrever um romance é fácil; escrever um bom romance é difícil. Mas escrever um misto de história e reportagem, em que a pesquisa exaustiva se dissolve no sabor da narrativa, e que se lê como um excelente romance, ah, aí já é muito, muito difícil! E, no entanto, o que me havia parecido impossível estava lá, letra por letra -- a grande saga familiar, a criação e a derrocada do império, os golpes, a quantidade infinita de personagens, os casos, as brigas, os amores, as gargalhadas, a vida e a morte.

Um trabalho fenomenal, lindamente escrito, entremeado com alguma ficção, muitas lembranças pessoais e envolto, afinal, numa teia de afeto da medida exata. Arnaldo foi na do Che: endureceu sem perder a ternura. Fez um gol de placa.

* * *

O que há de ficção entra -- com um tom de Bashevis Singer -- no recheio da história dos primeiros tempos registrados, em fins do século XIX, num shtetl perdido na Rússia. Os shtetls eram umas poucas aldeias onde o czar permitia que os judeus vivessem (mas onde, com freqüência, eles eram dizimados em pogroms). De lá os Bloch foram para Jitomir, e depois Kiev, de onde vieram para o Brasil.

* * *

Adolpho é, naturalmente, o personagem central. Ele era o que os anglo-parlantes definem como “larger than life”, maior do que a vida, como se as pessoas assim rotuladas extravasassem os moldes destinados aos mortais comuns. Tinha um quê de patriarca bíblico, trágico e cômico ao mesmo tempo; era adorado ou detestado, amado e temido.

Casos acontecidos na Manchete, ou com Adolpho Bloch, corriam por todas as redações cariocas. Freqüentemente eram tão bizarros que eu achava que só podiam ser invenção. Agora, depois de ler “Os irmãos Karamabloch”, percebo que, diante da realidade, toda invenção seria tola e anêmica: certas vidas de fato se sobrepõem a qualquer arte.

* * *

Um ótimo livro para ler junto com “Os irmãos Karamabloch” é “Aconteceu na Manchete” (Desiderata, 432 páginas), coletânea de depoimentos de profissionais que trabalharam nas várias revistas da Bloch. Muitos dos casos que o Arnaldo conta estão lá, vistos por outro ângulo; enquanto “Os irmãos” joga luz sobretudo na família e nos bastidores, “Aconteceu” traz relatos da frente de batalha e do que era ser funcionário da casa. Ganhava-se pouco, nem sempre era divertido, mas dificilmente se encontrarão lembranças iguais.


(O Globo, Segundo Caderno, 20.11.2008)

Nenhum comentário: