13.11.08


Futuro do pretérito

Ouro Preto era linda, romântica, cheia de contradições. Estava caindo aos pedaços, mas conservava toda a sua força e beleza, como uma espécie de Traviata arquitetônica no fim do terceiro ato. Aqui e ali havia uma casa bem mantida, mas no geral o que se via eram paredes irregulares, trechos de reboco caídos revelando tijolos e estruturas de madeira em estado freqüentemente precário. As janelas ficavam abertas, as portas destrancadas. Eu espiava curiosa e era convidada a entrar, ver a casa, tomar um café, beber uma água. O café era coado já com açúcar, muito açúcar; a água, com gosto de moringa, era a melhor do mundo.

À noite, entre um poste e outro, havia grandes áreas escuras; isso, claro, quando não faltava luz. Descer ou subir as ladeiras tarde, no escuro e no silêncio, quando todos dormiam, dava um medo danado, mas era um tipo bom de medo: medo de assombração, de almas penadas, dos cachorros que latiam forte. O menor barulho se transformava no maior susto. Ainda não inventaram parque temático que consiga reproduzir o frio na barriga, o arrepio na espinha.

Ouro Preto era uma viagem no tempo, uma cidade com um passado riquíssimo e um futuro incerto. Tinha um vago cheiro de guardado e de mofo que não lhe caía mal, ainda que me obrigasse a consumir quantidades industriais de Polaramine. Corriam os anos 70, dona Olímpia Cota era viva, e meus guias e anfitriões eram ora Carlos Scliar, que me apresentou a cidade, ora Aloísio Magalhães, empenhado de corpo e alma na recuperação da antiga Vila Rica. Eu já disse: sou uma moça de sorte, se não sou.

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Um dia a vida mudou e, mais rápido do que eu poderia imaginar, passaram-se quase trinta anos sem que eu voltasse a Ouro Preto. Semana passada, a convite do Fórum Literário, revi a cidade de que tenho tão boas recordações, e à qual quero tanto bem. Fui com o receio que a gente sente quando se prepara para reler um livro ou rever um filme de que gostou muito na juventude. Há lembranças que sobrevivem tão bem na imaginação que é melhor deixá-las lá, quietas.

Não foi o caso de Ouro Preto, que mudou tanto que é, a bem dizer, uma outra cidade; de modo que as minhas lembranças continuam intactas, numa dimensão em que não existiam antenas parabólicas. O Centro Histórico está mais limpo e mais bem cuidado; a maior parte da fiação foi enterrada, as casas estão pintadas, as igrejas iluminadas e bem conservadas. Um cheiro de tinta e de cera substituiu o cheiro dos séculos nos prédios públicos.

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A Ouro Preto do meu coração será sempre a cidade pobrinha, délabrée e romântica dos velhos tempos, embora eu reconheça que, a continuar naquele ritmo, ela em breve sumiria do mapa. Ali o passado não tinha futuro mas, em compensação, estava muito presente. Quem chega hoje não sabe o que se perdeu, e pode aproveitar, sem nostalgia, o que se ganhou: uma ótima rede hoteleira, restaurantes de qualidade, museus bem arrumados, roteiros turísticos diversificados.

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A maior parte das mudanças, infelizmente, foi para pior. A principal, e a meu ver mais grave, foi a ocupação predatória e desordenada do entorno. Quantidades de casas, em alguns casos verdadeiras favelas, cercam a paisagem preciosa; há 30 anos, o máximo que se via era uma casinha aqui, outra acolá. A magia de encontrar aquela jóia do barroco em meio aos vales e colinas desapareceu por completo, levada, entre outras coisas, por um trânsito inaceitável numa cidade histórica. Carros, ônibus e caminhões circulam livre e caoticamente por todos os lados. A poluição visual e sonora é um desastre, mas pior, certamente, há de ser o efeito da trepidação na fundação das casas.

Ouro Preto não é um museu, é uma cidade viva, com habitantes que precisam se locomover e que não podem ficar a pé (ou só a pé) ladeira acima e ladeira abaixo. Como resolver a questão? Fácil não é, mas também não deve ser impossível. O mundo está cheio de localidades históricas que contornaram o mesmo problema com bastante sucesso, em geral deixando carros particulares de não-residentes fora do centro; ônibus e caminhões, nem pensar. O fato é que a comodidade do cidadão não pode se fazer às custas do assassinato da sua cidade.

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Até outro dia eu tinha bastante simpatia pela Jandira Feghali, que me parecia correta e bem-intencionada, sempre batalhando pelo nobre ideal de levar saúde para a população. Agora, que ela aceitou sem pestanejar a secretaria de cultura (!), depois de passar os últimos anos como secretária de tecnologia (!) em Niterói, percebo que a sua batalha, no fundo, era exatamente igual à dos demais: a batalha por uma boquinha.

A sua nomeação deixou claro, também, o lado vingativo de Eduardo Paes. Os artistas fecharam com Gabeira? Pois agora que amarguem Jandira, só para aprender com quantos paus se faz uma canoa.


(O Globo, Segundo Caderno, 13.11.2008)

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