6.11.08


Longa jornada noite adentro

Escrevi a crônica de hoje, sobre as eleições americanas, na noite de terça-feira. As urnas ainda estavam sendo abertas nos Estados Unidos e, apesar de todas as pesquisas apontarem a vitória de Obama, caprichei no subjuntivo. Acho que não há jornalista que, nessas horas, não pense na clássica foto de 1948, que mostra o recém-eleito presidente Truman segurando, sorridente, um exemplar do Chicago Daily News em que a manchete, escrita de véspera, brada a vitória do concorrente. No fim da tarde, meu filho, que mora no Texas, havia me ligado, incapaz de conter o entusiasmo:

-- Uhuuuuuuuuuuuuu, já ganhamos! De acordo com as pesquisas, o Obama tem quase 99% de possibilidade de ganhar.

-- Calma, calma. Quase 99% significa que o McCain ainda tem mais de 1% de chance. É difícil, mas não é impossível. E com esses republicanos, nunca se sabe.

-- Não tem jeito, mãe. Eles não têm como virar o jogo. Podem roubar na Flórida, podem apelar para a Suprema Corte, mas acabou, c’est fini, è finito, it’s over! Adiós, McCain!

No fundo ele estava certo, mas eleição só termina quando acaba. Mais um tempo, nova chamada:

-- Abre teu email! Eu fotografei o meu voto, essas coisas a gente tem que guardar.

-- Ah, aí pode fotografar?

-- Claro que não, é proibido. Mas como é que eu ia deixar um momento histórico desses passar sem registro?

Compreendi bem o menino. Eu também fotografei o meu voto nas últimas eleições, porque há muitos anos não sabia o que era votar tão cheia de esperança e de entusiasmo. Agora a foto é só um arquivo no disco rígido, mas como dói.

Abri a mailbox e lá estava a imagem, sem muita definição, feita com a câmera do celular. Nela, vê-se uma ponta do dedo do Paulinho segurando uma caneta e, numa cédula de papel, à antiga, o voto bem marcado, para não dar margens a dúvidas. Tenho a impressão de que, com este único clique, ele registrou não um, mas dois momentos históricos: o da eleição de Barack Obama, e o das últimas eleições em cédulas de papel num país desenvolvido.

Para mim, havia ainda duas outras informações. A primeira: as instruções para os eleitores estavam escritas em inglês e em espanhol, o que, para efeitos práticos, mostra que o inglês já deixou de ser a língua universal do país mesmo na esfera burocrática. Quer queiram quer não, os Estados Unidos são, efetivamente, um país hispânico. A segunda: havia um terceiro candidato à presidência, um certo Bob Barr, do Partido Libertário, de quem, ao longo desses meses todos de campanha, não me lembro de ter ouvido falar. Postei a foto no blog, onde todos esses detalhes foram devidamente apreciados pelos leitores. E ia pôr o ponto final na crônica quando o Paulinho ligou de novo:

-- Liga a CNN, mãe, para você ver que coisa impressionante! Há milhares de pessoas nas ruas em todas as cidades grandes, nunca se viu nada igual por aqui, é lindo!

Ligar a CNN, no meu caso, significa abrir mais uma janela do browser no computador. Abri, e fiquei tão impressionada que resolvi abrir também uma janela para a Fox News, só para ver como eles estavam lidando com toda aquela alegria à solta. Meu computador é parrudo, meus dois monitores encaram bem várias janelas abertas, mas tudo tem limite. Fox News?! A máquina morreu e levou o texto consigo para a tumba. Fiquei sem reação, olhando para o vazio: isso já não me acontecia há tanto tempo que eu nem me lembrava mais de que era possível.

Assim como eleição, crônica também só acaba quando termina, viu, Cora Rónai? Ou seja: quando está lá, bonitinha, no sistema do jornal.

* * *

Agora são seis da manhã de quarta-feira. Acompanhei, pelo notebook, o elegante discurso de McCain, e a sóbria e extraordinária apresentação de Obama, um verdadeiro estadista. Seu discurso foi perfeito, notável pelas diversas costuras nas divisões do país, pela ausência de oba-oba, pelo alerta a respeito dos tempos bicudos que vêm por aí. Mal comparando, foi uma espécie de equivalente para tempos modernos do “Sangue, suor, trabalho e lágrimas”, de Churchill.

Foi uma noite histórica, que eu não teria perdido por nada. Estou convencida de que, se Barack Obama não tivesse sido eleito, os Estados Unidos não teriam mais conserto. Não acredito que ele, em si, poderá fazer muita coisa; não é herói de história em quadrinho, não tem super poderes, nem poderá desfazer, a curto prazo, as barbaridades perpretadas por Bush e pela quadrilha que com ele se instalou no poder. Mas acredito muito em idéias.

A idéia Obama -- como era a idéia Gabeira aqui no Rio -- é a idéia de uma nova forma de fazer política: mais transparente, mais moderna, menos calhorda. Foi essa idéia que galvanizou tantos eleitores de primeira viagem, lá e cá.

A idéia Obama é a idéia da aceitação das diferenças, a idéia de que a essência de um ser humano não está no nome ou na cor da pele; é a idéia de que nenhum país pode prescindir dos demais, nem mesmo os Estados Unidos, que se acreditam tão auto-suficientes. A idéia Obama é também, e sobretudo, a rejeição à idéia Bush, vale dizer, ao maior conjunto de mentiras, imoralidades e crimes jamais visto nos Estados Unidos.

Tomara que pegue.


(O Globo, Segundo Caderno, 6.11.2008)

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