2.10.08


Nova York, sete anos depois

Houve um tempo em que eu ia tanto a Nova York que sabia de cor os números dos vôos e seus respectivos horários. Eram viagens curtas, de trabalho, mas naturalmente sempre sobrava um pouco de dia aqui e um pouco de noite acolá, que ninguém é de ferro. A última dessas viagens aconteceu em julho de 2001 e, numa de suas pontas livres, fui, a convite de um colega que escreve sobre vinhos num jornal de São Francisco, àquela que seria, supostamente, a melhor biblioteca de garrafas do mundo. Não bebo nem me interesso por vinhos, mas o papo era bom e a vista, imbatível. E assim é que, afundada numa daquelas poltronas king size em que cabe uma família de tamanho médio, vi o anoitecer de uma das janelas do 107 andar do World Trade Center.

O céu estava limpo, o Empire State e o Chrysler Building pareciam pequenos e, à medida que escurecia, as luzes de Manhattan se acendiam uma a uma, como num filme. Visto lá do alto, o mundo era belo, comportado e confiável. Sobravam menos de três meses de vida às duas torres; sem saber, porque dessas coisas a gente só sabe depois e aí o coração se aperta, “Ah, se eu soubesse...”, estávamos vivendo o fim de uma era.

Quando a poeira literalmente baixou e a indústria de tecnologia voltou a considerar Nova York ponto de encontro viável, eu, que antes me sentia tão em casa na cidade, já tinha perdido qualquer vontade de viajar de novo aos Estados Unidos. A cultura do medo implantada pelo governo era visível a olhos nus de qualquer ponto do planeta, e os direitos humanos e as liberdades individuais, antes tão caros aos americanos, sofriam golpe após golpe sem que se ouvisse uma voz dissonante na imprensa. O incêndio do Reichstag, apropriado pelos nazistas em 1933, estava a meia hora histórica, e a lembrança, para quem cresceu à sombra das suas conseqüências, não era bom presságio.

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Após sete anos evitando ao máximo atravessar o Atlântico, como quer a peculiar geografia do presidente, com muitas milhas sobrando e razoavelmente animada com a mudança de ventos prenunciada pela candidatura do Obama, decidi tirar férias em Nova York. De acordo com os residentes com quem conversei, a cidade está mais segura do que jamais esteve. De fato, contam-se mais turistas ostentando câmeras num só quarteirão do Times Square do que em toda a orla do Rio, e olhem que, em termos de fotos, a nossa orla dá de dez. Eu mesma, em nenhum momento, me senti apreensiva em relação aos meus pertences.

Mas depois de 15 dias ouvindo as sirenes das viaturas, depois de topar com duplas de guardas portando armas exclusivas de traficantes em quase todas as esquinas, depois de passar por uma verdadeira revista de aeroporto para levar meus netos à estátua da Liberdade, acho que a palavra que escolheria não seria “segura”; seria “paranóica”. Eu não estranharia se, passeando pelo Central Park, desse de cara com um caveirão ou com uma divisão de tanques.

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Os sinais de que a economia não vai bem poderiam ter passado despercebidos se eu não acompanhasse o noticiário. Ainda assim, num supermercado do Village, um cartaz colado na porta pedia desculpas pela falta de certos produtos, garantia que todos na casa estavam trabalhando duro para resolver o problema e agradecia a fidelidade dos fregueses. E num domingo, passando pela Sétima Avenida, havia um ajuntamento enorme em frente a um prédio. Eu estava de carro, com amigos, e não conseguimos estacionar para fazer a foto histórica: o prédio era a sede do Lehman Brothers, e as pessoas, suponho, seriam investidores ou funcionários em busca de notícias. No dia seguinte, o banco pediu concordata.

A máquina do consumo frenético vai bem, obrigada, e ignora solenemente a crise, sobretudo nas lojas mais caras e extravagantes. Ela consumiu meus dólares, minhas melhores intenções e o que ainda restava da minha crença de que um espírito forte e disciplinado tem poder sobre cartões de crédito. Mas numa cidade que berra “Compre! Compre! Compre!” o tempo todo, é preciso ser santo (ou surdo) para não cair em tentação.

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Nova York me deu a impressão de estar mais cheia, e certamente está mais neurótica, do que há sete anos. Continua linda, irresistível e insuportável, um universo de contradições que dá muito o que pensar. Há uma xenofobia latente no ar, paradoxal e patética numa metrópole feita de estrangeiros; tenho a sensação de que todos se detestam, mas, até por saberem disso, fazem um enorme esforço de convivência.

Apesar da tensão e da insegurança permanentes, a tônica da cidade não é a violência. As notícias de polícia ocupam um espaço modesto no jornal, como ocupavam no Rio da minha juventude. Pego o New York Times e imagino como deve ser interessante fazer um jornal que pode se dar ao luxo de ter uma primeira página tão variada. Nos jornais cariocas estamos, há tempos, sendo pautados por uma guerra civil que não podemos ignorar, e da qual não há mais como fugir.

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Fui ao hotel Algonquin visitar Matilda, a gata. Para minha alegria ela está viva e bem. Fez 13 anos no dia 8 de agosto e ganhou uma festa surpresa: funcionários e hóspedes cantaram parabéns e brindaram em sua homenagem. A imprensa compareceu em peso.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.10.2008)

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